Os toxicodependentes e a criminalidade

Portugal já teve 100 mil heroinómanos. Agora tem quase 45 mil consumidores de crack. É um problema.

Há mesmo muitos anos que escrevo sobre criminalidade e, por isso mesmo, tenho falado com pessoas muito interessantes. Bem sei que a criminalidade não pode só ser vista de um ângulo, pois aí entra-se num beco sem saída e sem soluções. Não vou ao tempo dos anúncios a preto e branco ou do Zé do Telhado, mas é normal que muitas situações se repitam. O consumo de drogas duras a céu aberto é das coisas que mais incomodam o comum dos cidadãos. Uma pessoa sair de casa ou passar de carro junto a um bairro problemático e ver alguém a injetar-se não é propriamente um bom retrato para o resto do dia. Se a isso juntarmos umas pessoas estranhas para nós, que se vestem de uma forma diferente, que se portam de forma estranha, que falam uma língua que não entendemos, o retrato pode ganhar outras proporções e o sentimento de insegurança pode tornar-se maior.

É por isso que personagens como João Goulão são tão importantes numa sociedade. Quase desde sempre ligado ao combate ao consumo de drogas, o médico, de 70 anos, lidera agora o Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências ICAD, que substitui o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e das Dependências (SICAD). Já falámos várias vezes sobre a problemática, desde os tempos em que havia quase 100 mil heroinómanos só em Lisboa, nos idos anos 80/90.

Quando foi criado o Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), João Goulão deu corpo a uma vasta equipa de 1400 profissionais que conseguiu reduzir os números de toxicodependentes para valores bem aceitáveis, saltando à vista que desapareceram das imediações da Avenida de Ceuta, isto é, dos nossos olhos.

Como tudo corria bem, algum Governo decidiu desinvestir no IDT, reduzindo praticamente a equipa a 80 profissionais, depois da troika e da covid-19 foi o que se sabe. Os toxicodependentes, como vampiros que saem de uma gruta, começaram a surgir aos milhares nas ruas de Lisboa e Porto, nomeadamente na Avenida de Ceuta, obrigando o último Governo de António Costa a acabar com o SICAD e a criar o ICAD – que este Governo manteve – onde Goulão está a reconstruir uma equipa que irá dar condições aos novos e velhos toxicodependentes, com equipas interdisciplinares, com apoios sociais e por aí fora, procurando dar, de novo, uma nova vida a quem caiu no vício. Só que ao contrário das décadas de 80/90, em que os consumidores eram de todas as classes sociais, nesta nova vaga os ‘agarrados’ fazem parte das classes mais desprotegidas, onde se inserem muitos migrantes, principalmente do Paquistão e do Nepal. Curiosamente, segundo os profissionais que estão na primeira linha de ajuda, essas pessoas começaram a consumir em Portugal, onde também apanharam o VIH.

Goulão não se cansa de explicar que os toxicodependentes, independentemente da nacionalidade, precisam de ajuda para fugir do abismo e que se ela existir a maioria consegue seguir a sua vida, apesar das cicatrizes.

Todos também sabemos que é um imperativo moral tratar dessas pessoas – o vício na droga é uma doença, apesar de 85% dos consumidores nunca ficarem ‘agarrados’ – até para que a criminalidade não nos comece a tornar intolerantes.

P. S. A ministra da Administração Interna irá conseguir o milagre de transformar ‘cacetetes’ em polícias? É que ainda não percebi onde é que vai arranjar tantos como anunciou. Mas, boa sorte. l

vitor.rainho@nascerdosol.pt