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Agora tudo (me) parece de pernas para o ar, nos Estados Unidos mais do que em qualquer outro lado.

A política norte-americana confunde as referências de alguém que, como eu, despertou para estas coisas nos anos 70 e 80 do século passado. Não é só a dos Estados Unidos, mas a de lá tem uma relevância ímpar. Cresci, dizia, num tempo em que a ‘direita’ representava o privilégio, o respeito pelas instituições, a crença nas empresas, no livre-comércio e no capitalismo global. Era, também, uma coisa de (mais) velhos. A esquerda defendia os descamisados, os trabalhadores, os oprimidos e flutuava bandeiras vermelhas contra o sistema. A sua ânsia de mudança arrastava os jovens. A esquerda, não obstante as profissões de fé na solidariedade com todos os povos do mundo, era protecionista e desconfiada da imigração, que via como uma arma do capital para exercer pressão sobre os salários e os trabalhadores. Nesse tempo, o culto da personalidade e os partidos-seita eram coisas da esquerda. Eram os dias da luta de classes, do preto e do branco.

Agora tudo (me) parece de pernas para o ar, nos Estados Unidos mais do que em qualquer outro lado. A esquerda americana (ou mais propriamente as elites ligadas aos Democratas) bate-se por causas abstratas (e quantas vezes imaginárias), como a promoção da agenda DEI, que nada fazem para resolver os problemas e sofrimentos que afetam muitos dos seus concidadãos, aqueles a quem num lapso freudiano Hillary Clinton chamou «deploráveis». Aqueles que, como notou Niall Ferguson recentemente, estando nos 20% do fundo da distribuição do rendimento têm indicadores de qualidade de vida ao nível dos da União Soviética nas vésperas do colapso do comunismo.

Quem ergue a bandeira da classe operária e assume as dores dos deserdados da globalização é o movimento MAGA que, sob a liderança de Trump (que, para tornar as coisas ainda mais confusas, é um multimilionário sem uma ponta de empatia social), tomou conta do Partido Republicano. Quem é esta ‘working class’ que alimenta o MAGAnismo? Concentram-se sobretudo no mid-west em volta dos Grandes Lagos; são brancos, paroquiais e ignorantes do mundo; as suas comunidades, outrora prósperas com manufatura ou extração mineira, foram atingidas pela concorrência internacional, pela deslocalização industrial e pela agenda verde, e transformaram-se numa ‘cintura de ferrugem’, devastada pela falta de perspetivas, obesidade, doença, alcoolismo, drogas e ‘morte por desespero’. Foram, como alguém disse, ‘traídos’ pelo capitalismo moderno e global.

Não existe qualquer época histórica na qual o progresso tenha beneficiado todos. O progresso tem sempre ganhadores e perdedores. O capitalismo e a globalização também. Espera-se que, agregadamente, os ganhos dominem as perdas no sentido em que os ganhadores poderiam compensar os perdedores e, ainda assim, beneficiar. (Isto é, claro, um exercício hipotético, pois não existe qualquer mecanismo pelo qual as centenas de milhões de chineses e indianos retirados da pobreza pela globalização possam compensar os desgraçados do Michigan ou Ohio a quem essa mesma globalização atirou para a pobreza.) Muitas vezes os perdedores não têm voz e limitam a sua revolta a atos desesperados de destruição (os luditas, por exemplo). Mas hoje na América, em virtude do seu peculiar sistema eleitoral, eles têm poder político de facto e preparam-se para o exercer empurrando Trump para a Presidência.

De quem é a culpa desta situação? Proximamente, das luminárias democráticas que, prisioneiras de estereótipos culturais, desprezaram e menosprezaram as raízes profundas do movimento MAGA. Mais fundamentalmente, do capitalismo liberal que falhou na sua promessa de combinar crescimento com o progresso social.