Há mais vida para além do Orçamento?

Dizer-se que ‘há mais vida para além do défice’ significa pouca preocupação com o equilíbrio das contas públicas.

Na mensagem anual, no início de 2003, o Presidente da República, dr. Jorge Sampaio, referiu-se aos problemas económicos e sociais que afetavam o país.

Ao usar a fórmula inédita da ‘magistratura do estímulo’, em vez da habitual expressão ‘magistratura da influência’, Sampaio chamou a atenção do Governo, da Oposição e, sobretudo, dos portugueses para as dificuldades que se adivinhavam.

Ficou célebre a expressão «há mais vida para lá do Orçamento» enquanto aviso para o perigo de aplicar políticas públicas erradas e estímulo para desenvolver medidas, que no quadro da política orçamental, fossem suscetíveis de alterar a situação.

Infelizmente o poder político ignorou estas advertências e, ironicamente, vinte anos depois, o que ficou dessa significativa intervenção, com a cumplicidade de uma comunicação social especulativa, foi o ‘testemunho’ (errado) de que o Presidente teria dito «há mais vida para além do défice».

Qualquer observador bem intencionado concluirá que as duas expressões significam coisas muito diferentes.

Dizer-se que «há mais vida para além do défice» significa pouca preocupação com o equilíbrio das contas públicas e, ainda menor preocupação, com o nível de despesa e com o endividamento daí resultante.

Afirmar-se que «há mais vida para além do Orçamento», traduz um apelo para que, num quadro orçamental que respeite os interesses do país e acolha as regras financeiras da Zona Euro, sejam aplicadas as políticas públicas mais eficazes para assegurar um crescimento sustentado da economia e favorecer um quadro social mais amigo do cidadão comum.

Relembrar isto é particularmente relevante no momento atual.

No plano do discurso, o mantra das contas certas foi, finalmente, assumido pelas principais forças políticas mas falta o mais difícil ou seja o passar das palavras para os atos.

Ora este é um momento decisivo para a prova real, pois aproxima-se a apresentação, discussão e votação do Orçamento de Estado.

Curiosamente, a rejeição deste Orçamento, será a última oportunidade, antes das eleições presidenciais de 2026, para se criar uma turbulência política e até mesmo uma antecipação das legislativas, um cenário que os extremistas tanto desejam («que se lixe a estabilidade» diz Paulo Raimundo).

É certo que, como afirmou recentemente o ex-Presidente Cavaco Silva, «não há nenhum drama se o orçamento não for aprovado». E não há.

«Não é por falta de mecanismos legais que o OE pode constituir um entrave à governação», afirmou também a dra. Nazaré Costa Cabral, presidente do Conselho das Finanças Públicas.

Mas é óbvio que o chumbo do OE não é indiferente, pois pode provocar um clima de perigosa instabilidade que nem o PR nem o Governo devem desejar.

Sendo esse o verdadeiro objetivo da extrema direita e da extrema esquerda compete ao Partido Socialista, partido estruturante do sistema político português, desatar esse nó, mesmo que tenha de recorrer à figura da ‘abstenção violenta’.

O tempo do Orçamento não pode ser o tempo da afirmação de uma espécie de coligação Frankenstein que, se reaparecer, condicionará as opções da política orçamental de 2025.

Embora parte da legislação fiscal aprovada conjuntamente pelo PS, Chega e extrema esquerda viole, com boa probabilidade, a chamada lei-travão (n. 2 do artigo 167 da CRP) o Prof. Marcelo de Sousa promulgou-a , numa decisão que considerou essencialmente política, tentando assim (quem sabe!) um mais fácil entendimento para a aprovação do próximo Orçamento.

Até por isso o Presidente da República não pode ficar agora à margem deste complexo processo, pois, se o fizer, acabará por ter de gerir uma crise política de grandes dimensões ou, em alternativa, ficar para a história, ao contrário de Sampaio, com o estigma de ter pactuado com um novo e preocupante desequilíbrio das contas públicas.