O Matuto e a Peladinha*

É então que o Matuto se dá conta de que não mais irá jogar à bola com o primo Daniel. Pelo menos, deste lado do céu. Todavia, o Matuto sabe de fonte segura que nos campos verdejantes celestiais há peladinhas imensas onde o primo Daniel já joga.

matuto = diz-se de quem vive no mato e a quem falta traquejo social; caipira; matreiro.
O verbo matutar, significa meditar ou ponderar.

O Matuto sempre gostou duma jogatana de futebol. A célebre peladinha – no Brasil, conhecida como pelada, racha, baba. A peladinha caracteriza-se por uma ausência de medidas do campo de jogo; desconsideração para com calçado adequado ou uniforme; sem “foras de jogo” (no Brasil, impedimento, por favor); e practicada em praças, terrenos baldios ou praias. É o domínio do amadorismo… e da diversão pura!

Na memória afectiva do Matuto habitam jogos memoráveis com o saudoso primo do Matuto, Daniel, o “penquinha”. Jogos de matraquilhos (pebolim, no Brasil, por favor) quando se poupavam moedas de 1 escudo para inserir na ranhura mágica que soltava as bolas. Jogos de ping-pong debaixo da figueira grande na Farinha Branca, no Alentejo profundo. E jogos de futebol: as peladinhas. O Matuto e o primo Daniel faziam uma dupla imparável. Havia um entendimento telepático que culminava em vitórias notáveis. Tudo acontecia em Paio Pires, concelho do Seixal, no final da década de 1970. Os inimigos figadais eram os Gatos. O Matuto e o primo Daniel, moravam na parte alta de Paio Pires enquanto os Gatos moravam na parte baixa. A rivalidade contagiava os relacionamentos sociais. Um dia o primo Daniel apaixonou-se por uma menina da zona dos Gatos e foi um drama, tipo “Romeu e Julieta”, dos antigos. Na parte baixa da vila havia um campo de areia escondido num buraco. Perfeito para peladinhas. O único dilema era ser território dos Gatos. O Matuto recorda inúmeros jogos que se disputaram naquele terreno onde os Gatos eram reis e senhores. Ganhar aos Gatos, ali, e sair, dali, com o nariz inteiro, era uma proeza digna dos heróis da Marvel. Muitas vezes os jogos acabavam numa batalha campal. O Matuto garante que o segredo era marcar o golo da vitória bem no final do jogo, e “pernas para que vos quero”. Num célebre jogo as coisas ficaram dramáticas. Foi dado o sinal entre o Daniel, primo do Matuto, e o Paulo da padaria. O Lino e o Saraiva estavam preparados para fazerem o bloqueio corporal. O Daniel gingou e tocou a bola de calcanhar que pingou para o pé direito do Matuto. Foi lindo! Ainda os Gatos, de boca aberta, se refaziam da surpresa e já o Matuto disparava em direcção à ribanceira. O Daniel e o Paulo da Padaria já tinham galgado a arriba e esticavam os braços para içar o Matuto. O Lino e o Saraiva desferiram pontapés certeiros nos Gatos mais ousados, e pisgaram-se. O Matuto estava quase a salvo quando um silvo metálico se ouviu e foi enterrar-se no chão. Uma faca! Épico. Mas, o jogo foi ganho e o Matuto e os amigos safaram-se com a honra e o corpo intactos. Foi por uma unha negra – relembra o Matuto.

Anos mais tarde, no verão húmido do Rio de Janeiro, o Matuto e o Daniel, primo do Matuto, passeavam no bairro de Pedra de Guaratiba. Adentraram o Seminário Congregacional do Rio para apreciarem os jardins. No ar, o cheiro duma promessa de chuva de verão. Dois moços do bairro aproximam-se de bola debaixo do braço: “vai uma peladinha, Português!?” O Daniel, primo do Matuto, aceitou o desafio imediatamente. Ora bem! Dois contra dois, no relvado (gramado, no Brasil, por favor) do Seminário- terreno sagrado. A escassos 2 quilómetros o estádio do Vasco da Gama, São Januário – também território sagrado para os Vascaínos. Balizas artesanais, mas dedicação séria. Camisas a servir de postes. Calças arregaçadas. Pés descalços. Focados! Era o velho jogo e contra-jogo entre o Matuto e o primo Daniel. Era uma peladinha! O gingar da cintura para deixar a bola rolar alegre e solta. A telepatia da procura dos espaços vazios. A finta de corpo que deixava o oponente atarantado. Na ressaca das jogadas nascia a beleza do golo. A meio do jogo a chuva precipitou-se refrescante. Terreno escorregadio. Lances curtos. Corridas tensas. Lançamentos de bola menos aventureiros. Controlo. O Matuto e o primo Daniel teriam uns singelos 40 anos. Os moços andavam pelos 20. Naturalmente, a experiência venceu a juventude. De bola entre as pernas os Cariocas lá foram digerir a derrota pelas vielas de Pedra de Guaratiba. Formidável – comenta o Matuto.

É então que o Matuto se dá conta de que não mais irá jogar à bola com o primo Daniel. Pelo menos, deste lado do céu. Todavia, o Matuto sabe de fonte segura que nos campos verdejantes celestiais há peladinhas imensas onde o primo Daniel já joga. E o Matuto vive na convicção de que quando finalmente chegar lá, aos relvados celestes, haverá uma comitiva de anjos à sua espera. Equipados e preparados. Ansiosos, com bola a saltar nas mãos: “Vai uma peladinha, Português!?” O Daniel, primo do Matuto, estará pronto, e os dois aceitarão o desafio dos homens de branco. E, sabem que mais? O Matuto tem a certeza de que há grandes chances de ganharem à equipa angelical. A razão é simples: É público e notório que uma das regras do futebol, é proibir o uso de asas! Está no papo – assegura o Matuto.

*Dedicatória: para o Afonso de Melo, cronista incansável de peladinhas por esse mundo fora.