Um sótão cheio de arte roubada

Stéphane Breitwieser era um colecionador criterioso e exigente, com uma especial predileção por obras dos séculos XVII e XVIII. Em sua casa acumulavam-se tesouros no valor de centenas de milhões de euros. Só havia um pequeno problema:Breitwieser gostava das peças, mas não gostava de as pagar.

Um automóvel encosta na berma da route nationale 83, perto da fronteira com a Alemanha. O condutor sai do carro e dirige-se apressadamente à vala do canal que ali passa. Precisa de aliviar a bexiga. Enquanto abre a braguilha e afasta as pernas, repara nalguma coisa colorida no chão. Não são flores, é um tecido. Mais concretamente uma tapeçaria antiga.

«Como a tapeçaria parece valiosa», escreve Michael Finkel a caminho das páginas finais de O Ladrão de Arte: uma história verídica de amor, crime e uma perigosa obsessão (ed. Porto Editora), «o motorista entrega-a à polícia distrital, a qual presume tratar-se de um tapete banal que foi descartado por alguém sem maneiras. É colorida, porém, e os agentes colocam-na no chão da sua sala de lazer, debaixo da mesa de bilhar, e pisam-na durante semanas até tomarem conhecimento do achado no canal».

De facto, um pouco mais abaixo do local onde repousava a tapeçaria abandonada, seriam resgatadas da água e da lama cerca de uma dezena de peças de prata, entre as quais uma espada de caça do século XVII. Mas como foram todos aqueles preciosos objetos, dignos de um museu, ali parar?

No seu livro, Finkel reconstitui o percurso absolutamente singular de Stéphane Guillaume Frédéric Breitwieser, um desempregado que haveria de reunir em sua casa uma das mais ricas coleções privadas, se assim se lhe pode chamar, de objetos de arte de todo o mundo.

Nascido em 1971, no seio de uma família abastada da Alsácia, cresceu numa casa senhorial «primorosamente mobilada – cómodas em estilo império do século XIX, poltronas Luís XV do século XVIII – e ornamentada com armas antigas. […] As paredes resplandeciam com pinturas», refere Finkel.

A sua paixão pelas coisas antigas veio-lhe também dos passeios de infância com o avô materno, que tinha um olho treinado para identificar pequenos vestígios do passado enterrados no chão. No final do secundário, Stéphane fez um pequeno estágio como segurança de museu.

De certo modo, esse mundo encantado acabaria por desmoronar-se quando os pais se separaram, tinha ele 19 anos. O pai levou consigo todos os marfins e livros antigos que herdara da família. Stéphane, devastado, foi viver com a mãe para um apartamento com móveis baratos do Ikea.

Pouco antes da separação dos pais, porém, Breitwieser tinha conhecido uma rapariga, Anne-Catherine Kleinklaus, auxiliar de enfermagem, de origens mais modestas do que ele. Juntos tinham o hábito de visitar museus e monumentos. Também não era raro ele entrar numa loja qualquer e surripiar um ou outro artigo que lhe agradasse. Stéphane achava-a bonita; Anne-Catherine gostava da excitação e sentido de aventura que ele trouxera à sua vida até aí um tanto monótona.

O primeiro roubo

«Num fim de semana do final da primavera de 1994 foram visitar a aldeia agrícola alsaciana de Thann, um aglomerado de casas, curvadas pela idade, que rodeiam uma igreja gótica com um imponente campanário de pedra. O museu local fica num celeiro restaurado do século XVI. Quando o casal chegou ao segundo piso, Breitwieser sentiu os seus olhos atraídos para uma vitrina, e trovejou nele uma sensação que lhe abalou o coração – o coup de cœur», escreve Finkel. «Era uma pistola de pederneira do início do século XVIII, talhada à mão em nogueira, incrustações de prata a ornamentarem-lhe o cano e o cabo. O primeiro pensamento dele foi que já deveria possuir algo assim. O seu pai tinha algumas pistolas de pederneira. Eram as peças favoritas de Breitwieser na coleção da família, e o pai sabia disso. Nunca mais vira nenhuma delas desde o dia em que o pai fizera as malas e se fora embora».

Ele olhou para ela e ela encorajou-o. Não havia outros visitantes nem tão-pouco vigilantes por perto. A vitrina era vulnerável, nem sequer tinha fechadura. Ele meteu a mão lá dentro, alcançou a pistola e guardou-a na mochila. Tão simples quanto isto. Depois saíram à pressa do museu e meteram-se no carro. Ele ficou «enjoado» do nervosismo e da ansiedade. Os dias e semanas seguintes foram de uma certa angústia, à espera de terem notícias da polícia a qualquer momento. Mas não aconteceu nada.

Um sótão digno de ali babá

O_segundo roubo, nove meses depois, também foi de uma arma antiga, uma besta que se encontrava num castelo do século XII que ele tinha visitado várias vezes ao longo da vida. Como a besta se encontrava demasiado alto, ele subiu a uma cadeira para a retirar; e como era demasiado grande para se sair com ela sem se ser notado, ele abriu uma janela e atirou-a lá para baixo, com a arma a aterrar em cima de uns arbustos. Em seguida ele foi recuperá-la enquanto Anne-Catherine ficou no carro.

Isto passou-se em fevereiro de 1995. Pouco tempo depois, o divórcio entre os pais de Breitwieser consumava-se e, com o dinheiro que recebeu, a mãe comprou uma casa nos arredores de Mulhouse, cedendo o sótão ao filho e à namorada para lá viverem juntos.

Aos poucos, o ‘ninho’ ia-se compondo. Além de uma imponente cama de dossel oferecida pelos avós de Stéphane, outras antiguidades começaram a adornar aquele espaço. Os roubos iam-se sucedendo a bom ritmo. Atrevidos mas discretos, Breitwieser e Anne-Catherine formavam uma grande dupla. Enquanto ela ficava a vigiar, ele ia soltando parafusos, cortando juntas de silicone, violando vitrinas, extraindo tudo o que achasse interessante e lhe parecesse estar à mercê. Sempre de forma silenciosa, sem causar escândalo nem usar qualquer forma de violência.

 Um dos golpes mais sensacionais realiza-se no dia do 24.º aniversário de Stéphane, em Estugarda, num castelo onde decorre uma exposição de uma coleção destinada a ser leiloada pela Sotheby’s. «O casal passa por salas onde há cabeças de alce montadas, móveis de ébano e relógios de cuco, até chegarem à galeria do terceiro andar onde está o lote 1118», relata Finkel. «Aí chegado, ele encontra finalmente o verdadeiro artigo cuja imagem lhe tem ocupado o espírito – um retrato de uma princesa feito no século XVI, Sibila de Clèves, que foi pintado por Lucas Cranach, o Jovem».

«Breitwieser fica hipnotizado», continua o autor. _E não é caso para menos:_trata-se de uma obra-prima de um dos mestres do Renascimento do Norte. «‘Vejo fios individuais no seu vestido, e sangue azul nas suas veias.’ Pintado sobre madeira, sem moldura e de pequena dimensão, mais ou menos com o tamanho de um livro de capa dura, o Cranach está em perfeitas condições, e vale provavelmente milhões. A Sotheby’s, que negoceia com artigos valiosos desde 1744, não poupa na segurança. Um exército de seguranças ocupa o castelo, em cada galeria há um ou mais. A multidão de domingo é enorme. A Sibila de Clèves é exibida num cavalete de mesa, vívida como um sol no centro da sala, e está abrigada sob uma cúpula de acrílico».

À primeira, o hesitante ladrão passa pela obra e segue o seu caminho. Mas o casal decide voltar atrás para uma segunda avaliação. E decidem que há uma aberta. Breitwieser «levanta a cúpula, pega no Cranach e enfia-o entre as páginas do seu catálogo de leilões». Ao colocar a cúpula de novo no seu lugar comete um pequeno erro, o barulho do pequeno cavalete a cair pode denunciá-lo. Mas ninguém repare. Ele suspira de alívio. Sai do castelo com a pintura debaixo do braço e dirige-se para o carro. Tem de se despachar para não se atrasar para o seu próprio jantar de aniversário em casa dos avós.

A malapata de Lucerna

Pratas, marfins, porcelanas, pinturas:_Stéphane e Anne-Catherine podem adormecer e acordar todos os dias na sua cama de dossel e olhar para aqueles tesouros. Há três anos que vão reunindo belos objetos no seu sótão sem quaisquer consequências. Tornou-se quase mais uma rotina do que uma aventura. A 28 de maio de 1997 Breitwieser entra numa galeria em Lucerna e abotoa-se com uma natureza-morta do holandês Willem van Aelst. «Talvez tenham andado vinte passos quando uma mão lhe agarra o ombro por trás, rudemente, e o faz dar meia-volta até ficar cara a cara com um funcionário da galeria». Desta vez não vão passar a noite em casa nem num quarto de hotel, mas num calabouço da polícia. Por sorte, a mãe de Breitwieser contrata um advogado e ele consegue safar-se. Ficam ambos proibidos de entrar na Suíça durante três anos, mas ninguém faz muitas perguntas e, mais importante ainda, ninguém se dá ao trabalho de ir ver o que o casal guarda em casa.

Até ao final de 1999, Breitwieser e Anne-Catherine roubaram cerca de 250 antiguidades e obras de arte. Ele, entretanto, arranjou um emprego bem pago numa brasserie, precisamente na Suíça, esgotado o prazo de três anos. Mas, mesmo bem remunerado, consegue «resistir a tudo, menos a uma tentação», como escreveu Oscar Wilde. E em 2001, numa visita ao Museu Wagner, novamente em Lucerna, ele rouba um cornetim com 400 anos que tinha pertencido ao famoso compositor. Decididamente aquela cidade não era a sua cidade da sorte. No dia seguinte, quando o casal regressa ao museu porque Stéphane não usou luvas e Anne-Catherine quer ir apagar as impressões digitais, ele é reconhecido por um funcionário do museu que chama a polícia, que o identifica e o detém com um par de algemas.

E as obras de arte do sótão? A mãe dele conta que ela própria pôs tudo em caixotes e em sacos e mais sacos cinzentos do lixo, que depois foi levando para a bagageira do seu BMW. Alguns dos objetos foram atirados para o canal. Três pinturas em cobre são abandonadas numa floresta. E depois há uma pilha com peças de madeira e pinturas a óleo a que a mulher, alegadamente para se vingar do filho, pegou fogo. Das perto de 300 obras roubadas pelo casal, avaliadas em qualquer coisa como mil milhões de euros, mais de uma centena nunca foram recuperadas. Na parte de trás de muitas delas, Breitwieser tinha colado um papelinho escrito à mão que dizia:_«Pelo amor à arte e à Anne-Catherine, as minhas duas paixões».