A revolução que nos pariu

Estava tão irritado que não teria reconhecido a Scarlett Johansson ou a Monica Bellucci completamente nuas no passeio ao lado da esplanada do Galeto.

         “Porque é que estão com essas caras de enterro?”, perguntei aos meus amigos.

            Alberto, Álvaro, Bernardo, Fernando e Ricardo e conversavam animadamente, com radiante espontaneidade, na esplanada do Galeto, à Avenida da República, mas assim que se aperceberam da minha chegada, uma transformação operou-se nas expressões dos seus rostos.

            Depois da discussão sobre o festival FeLiCidade, no CCB (ver Sol, 24 de Julho de 2024), senti que a minha inesperada presença lhes causara alguma perturbação. Sobre a toalha suja de migalhas e nódoas de gordura só restavam chávenas de café e copos com água no fim. Era um pouco depois das 14h. Os cinco pareciam formar um clube de cavalheiros beneméritos numa jangada.

            “Que fazes aqui?”, questionou-me o Álvaro, que sendo o mais aberto e expansivo – e o mais viajado – é também um homem elegante, com a camisa e as calças imaculadas.

            “Fui a um dentista aqui perto. De que é que estavam a falar?”, perguntei, enquanto me convidavam a juntar-me à mesa deles. Sentei-me a uma extremidade e pedi ao empregado de cabelo grisalho uma garrafa de água (como tinham acabado de me branquear os dentes, proibiram-me de beber vinho e café durante cinco dias, mas, em contrapartida, podia rir à vontade, pois os caninos e os incisivos que mostrava eram magníficos).

            “Para que não te sintas excluído, e em atenção aos teus dentes insuportavelmente brilhantes, suficientes para iluminar um estádio de futebol, vou tentar reproduzir o que estávamos a dizer”, disse o Fernando.

            “Podemos mudar de assunto?”, murmurou o Alberto, arqueando as sobrancelhas cabeludas.

            “Já que não podemos mudar de país, ao menos mudemos de conversa, como dizia o piolhoso do James Joyce”, acrescentou o Ricardo, sentado na borda da cadeira, com um sorriso trocista e os joelhos muito unidos.

            Fazia um daqueles dias encobertos. A temperatura devia rondar os 40 graus, o céu tinha cor de cano de esgoto e o ar pesava uma tonelada.

            “Já viste quem é que ganhou uma das bolsas do concurso ‘Escrita pela Democracia’, da Estrutura de Missão para as Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril?”, interpelou-me o Bernardo.

            “É o assunto mais palpitante do momento. Não são as eleições nos EUA, nem a ceia de Cristo nos Jogos Olímpicos, nem as eleições na Venezuela…”, asseverou o Fernando, com ironia amável.

            “Quem foi?”, inquiri, arrebitando as orelhas.

            “O Ivan Nunes. O ex-assessor do ex-ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva”, respondeu o Álvaro.

            “Certamente que se candidatou depois de ter saído do Ministério da Cultura”, resmunguei. “Quando é que abriu o concurso?”.

            “Abriu em 8 de Abril e decorreu até 9 de Maio. Na semana passada, no dia 23 de Julho, foram anunciados os oito vencedores das bolsas de criação literária do ‘Escrita pela Democracia’, para apoiar a produção de obras de ensaio sobre o 25 de Abril e a construção da Democracia portuguesa”, informou o Fernando, com voz de rã.

            “O novo Governo tomou posse no dia 2 de Abril. O Ivan já não estava no Ministério. Como qualquer português, candidatou-se”, defendi eu, agarrando-me teimosamente à ideia do concurso.

            “És tão ingénuo, meu amor! E, já agora, também acreditas que os bebés vêm de Paris… O Ivan sentiu-se sozinho, descobriu subitamente que havia aquele concurso e resolveu candidatar-se, como se nunca tivesse estado no centro das decisões tomadas no Ministério da Cultura?”, zombou o Ricardo. “O concurso foi anunciado em 21 de Março, em despacho do Ministério da Cultura, e está assinado pelo próprio ministro, Pedro Adão e Silva Cardoso Pereira, no dia 19 de Março”.

            “Trata-se do Despacho n.º 3064-A/2024, 21 de Março. Reza assim: ‘No contexto das Comemorações do quinquagésimo aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974, previstas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 70/2021, de 4 de Junho, o Governo decidiu criar um conjunto de programas especiais de apoio à criação artística. A Portaria n.º 393/2023, de 24 de Novembro, veio estabelecer, na área do livro e da criação literária, um programa especial de bolsas de criação literária, correspondente a oito bolsas semestrais no valor de € 7500,00, especificamente vocacionado para o ensaio e centrado na temática daquele acontecimento histórico. Este programa visa promover o desenvolvimento de obras que abordem as dinâmicas políticas culturais, sociais e económicas da Revolução, a resistência e luta antifascista, o colonialismo e descolonização e a consolidação democrática e qualidade da democracia”, leu o Fernando na Internet, a partir do seu telemóvel.

            As palavras saíam-lhe apressadamente, com medo de que perdêssemos o interesse no que estava a ler. Ainda assim, continuou, com os olhinhos minúsculos fixos no ecrã: “O Regulamento do Programa Especial de Bolsas de Criação Literária – Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, aprovado pela Portaria n.º 393/2023, de 24 de Novembro, determina que a abertura do concurso, bem como a composição e remuneração do júri de avaliação e seleção, é fixado por despacho do Ministro da Cultura, sob proposta da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB) e da Estrutura de Missão para as Comemorações do quinquagésimo aniversário da Revolução de 25 de Abril de 1974 (Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril)”.

            “Portanto, foi tudo cozinhado dentro do Ministério da Cultura, em articulação com a DGLAB e a Estrutura de Missão para as Comemorações do 25 de Abril”, sublinhou o Ricardo. “O Ivan Prata Arsénio Nunes, o mesmo que em 2022 foi designado adjunto do ministro da Cultura, que pertencia à estrutura que organizou o concurso, que estava no núcleo duro da instituição que concedeu o apoio financeiro para estas bolsas, apenas uma semana depois de sair do Ministério, candidatou-se a uma prova que ajudou a criar? E a Estrutura de Missão, como uma espécie de quintal do Adão e Silva, aceitou uma coisa dessas? E o Ivan Nunes não se absteve de se candidatar a uma dessas bolsas? E o júri não disse nada, não achou estranho? Isto roça a repugnância”, concluiu o Alberto.

            “Apetece perguntar porque é que o Adão e Silva não concorreu também a um dos projectos da Estrutura de Missão”, disse o Bernardo. “Assim, o carro saía ao padre e a mota ao sacristão”.

            “Quem eram os membros do júri?”, perguntei, com os braços cruzados sobre o peito.

            “Segundo o despacho do ministro, o júri era composto pelo José Miguel Sardica, o José Pedro Castanheira e o Rui Bebiano’”, informou o Fernando, enquanto esfregava a nuca com a mão direita.

            “É um júri à prova de bala. São membros extraordinariamente importantes da nossa comunidade”, defendi, com o ar de quem pede ao vento o favor de soprar um bocadinho.

            “Tenho dúvidas”, continuou o Fernando, franzindo o sobrolho. “Os percursos do Rui Bebiano e do Ivan Nunes cruzaram-se em várias ocasiões. O Ivan Nunes, quando tinha 21 anos, foi cabeça de lista às eleições europeias de 1994, pela Política XXI. Mais tarde, a Política XXI juntou-se ao PSR (Partido Social Revolucionário) e à UDP (União Democrática Popular) para formarem o Bloco de Esquerda. Depois, a Política XXI desfez-se como movimento e constituiu-se como associação política, passando a chamar-se Associação Fórum Manifesto – Centro de Estudos Sociais e Políticos, com sede na Praça do Príncipe Real. Tanto o Ivan Nunes como o Rui Bebiano pertenciam ao Fórum Manifesto e participaram na respectiva revista, a Manifesto“.

            “Não só isso”, interrompeu o Álvaro. “O Ivan e o Bebiano foram subscritores da candidatura cidadã do Tempo de Avançar, criada em Janeiro de 2015 para concorrer às eleições legislativas desse ano. O Rui Bebiano foi, inclusivamente, candidato por Coimbra, na lista do Livre/Tempo de Avançar”, acrescentou o Ricardo.

            “Quem é que ganhou as outras bolsas?”, quis eu saber, tentando desviar a conversa dos elementos do júri. Ao mesmo tempo, reparava no painel de esmalte sobre cobre, de Manuel da Costa Martins (co-autor, com Victor Palla, do famoso livro Lisboa, cidade triste e alegre ), que corre por baixo do letreiro néon com as palavras (relampejantes durante a noite): “Restaurante snack-bar Galeto”.

            “Um deles foi o Rui Feijó, com o projecto ‘Caminhantes & caminhos: o 25 de Abril e a revolução portuguesa (alguns momentos)’. É investigador no Centro de Estudos Sociais (CES), da Universidade de Coimbra. Os outros nomes não me dizem nada”, disse o Álvaro (gostavam que ele vos dissesse os nomes, mas não pode ser sempre ele a fazer o trabalho todo).

            “O Rui Bebiano, um dos elementos do júri que o avaliou, não é também investigador do CES?”, perguntou o Alberto, enterrando o nariz no copo de água.

            “Julgo que sim”, disse o Fernando. “Tal como o Ivan Nunes e o Rui Bebiano, também o Rui Feijó fez parte do Fórum Manifesto. E os três colaboraram na revista Manifesto. O Bebiano e o Feijó coincidiram em diversas ocasiões. Por exemplo, pertenceram ao Congresso Democrático das Alternativas, estiveram na organização da Concentração de Solidariedade com a Grécia, realizada no Porto em 2015, e recentemente, entre os dias 2 e 4 de Maio deste ano, participaram no ‘Congresso Internacional 50 anos, 25 de Abril’, que decorreu na reitoria da Universidade de Lisboa”, enumerou o Fernando, como se fosse um empregado de armazém a fazer um inventário.

            “Isso é uma infâmia!”, gritei, quase saltando da cadeira, como se tivesse sido disparado por um canhão de circo. Estava tão irritado que não teria reconhecido a Scarlett Johansson ou a Monica Bellucci completamente nuas no passeio ao lado da esplanada do Galeto. “São ambos historiadores que honram a profissão. São pessoas da mesma área, é natural que isso aconteça. Nesse colóquio internacional participaram dezenas de especialistas. Parece que gostavam de viver numa sociedade higienizada, onde ninguém pode ser amigo de ninguém. A amizade é o que nos protege da precariedade”, contrapus, sublinhando a trajectória académica de ambos.

            “O primeiro dever de um intelectual de esquerda é fazer uma análise crítica dos factos. Estamos apenas a tentar juntar as peças deste puzzle, para identificar possíveis injustiças na exclusão dos candidatos que não obtiveram a bolsa. Tanto quanto eu saiba, não houve qualquer favorecimento na atribuição da bolsa ao Feijó. Espero eu. Isso seria demasiado inquietante. De qualquer modo, tudo quanto falamos aqui fica absoluta e estritamente entre nós. Além disso, ainda nem sequer sabemos quantas pessoas se candidataram, tão-pouco foram divulgadas as actas do júri. Mas passemos adiante”, defendeu-se o Álvaro.

            “Quando se trata do erário público, do dinheiro dos nossos impostos, devemos ser rigorosos e tomar as opções mais justas”, acrescentou o Bernardo, limpando os lábios com o guardanapo de linho.

            “Sim, mas isso é um exagero que passa muito das marcas”, disse eu.

            “O Bebiano e o Feijó faziam parte do mesmo espaço de análise e crítica política autónoma e independente, chamada A Vaca Voadora“, disse o Ricardo, olhando para o interior da chávena vazia, como se estivesse a ler o destino nas manchas de café seco.

            “E o Rui Bebiano criou uma ‘revista crítica de opinião, ideias e artes’, a NON!, em que o Ivan Nunes colaborou”, disse o Álvaro, com o smartphone aberto na página do blogue do Rui Bebiano, A Terceira Noite, onde foi buscar aquela informação.

            “Vocês são terríveis. Gostam de esquadrinhar o mais sistematicamente possível tudo o que possam encontrar para denegrir as pessoas”, afirmei, passando as mãos nos cabelos mal semeados no cimo da minha cabeça (gosto muito de passar as mãos no que me resta de cabelo, talvez para me certificar de que ainda não estou totalmente careca, como um tomate pelado, ou um ovo demasiado cozido).

            “A crítica é a razão da nossa permanência, já dizia o António Maria Lisboa”, respondeu o Ricardo, com outro dos seus arrotos de erudição.

            “Não há pachorra! Vocês vêem ligações suspeitas atrás de todos os arbustos. Se gostam de rebolar na sarjeta, isso é lá convosco”, praguejei alto, remexendo-me pouco à vontade na cadeira. “De certeza que o Ivan Nunes apresentou um projecto extraordinário. O Ivan é inteligente, profundo, divertido…”.

            “Lá divertido deve ele ser. O Adão e Silva, quando cessou as funções como ministro da Cultura e lhe prestou público louvor, disse que o Ivan Arsénio Nunes ‘sempre se destacou pelas suas notáveis qualidades pessoais e profissionais, pela sua experiência e profissionalismo, aliados a uma empatia e sentido de humor que muito contribuíram para o bom ambiente e para o sucesso das nossas atividades’, revelou o Álvaro, continuando a ler a partir do seu smartphone.

            Para depois acrescentar, notoriamente embasbacado: “O louvor do Adão e Silva esclarece ainda – pasme-se! – que o Ivan Nunes revelou ‘um compromisso inabalável com as iniciativas da Comissão Comemorativa dos 50 Anos do 25 de Abril’ e que ‘foi decisivo para a implementação de projetos importantes, como as celebrações do Dia Mundial da Língua Portuguesa’. Se toda esta história já cheirava mal, com isto cheira ainda pior. Perante isto, não há margem para equívocos: o Ivan pertencia ao grupo restrito daqueles que, no Ministério da Cultura, mais directamente colaboravam com a Estrutura de Missão das comemorações da Revolução que nos pariu. E foi um dos que trabalhou, ao lado da Aida Tavares, da Anabela Mota Ribeiro e dos outros curadores, durante a ‘implementação” do Festival FeLiCidade, durante o qual se assinalou o Dia Mundial da Língua Portuguesa. Portanto, tudo indica que aquele meio milhão de euros – disse isto como se sentisse no ar o bafo daquele meio milhão de euros – saiu do Ministério da Cultura para a Estrutura de Missão, liderada pela Maria Inácia Rezola”.

            Ignorando o Álvaro, defendi, com um não sei quê de ofendido, as qualidades do filho de João Arsénio Nunes, historiador e militante comunista: “O Ivan estuda muito. É um tipo com miolo. É um livre-pensador, um dissidente. Além disso, é um homem de trato afável. Possui o dom da sociabilidade”.

            “Por acaso, toda a gente diz que ele é uma jóia de rapaz. Um rapaz muito agradável”, acrescentou o Álvaro, com os pés enfiados num par de sandálias. E riu-se, com um olhar irónico.

            “Ri-te, ri-te. És um perfeito actor de baixa comédia. Mas a verdade é que ele é doutorado em Estudos de Cinema pela Universidade de Kent, na Grã-Bretanha, e o mestrado tirou-o na New York University, na mesma área”, disse eu, inspirando fundo, para encher os pulmões com o ar poluído da Avenida da República.

            “Antes disso emigrou para o Rio de Janeiro. No Brasil, parece que se dedicava muito à cultura, ao descanso e à meditação”, informou-nos o Ricardo, que conhece bem o Brasil. “Passava os dias sentado nas praias de Copacabana e de Ipanema. Era um grande frequentador das selectas festas cariocas. A vida dele dava uma minissérie da Netflix”.

            “O Ivan nunca precisou de trabalhar. Levou sempre uma vida acolchoada, teve sempre o conforto garantido em todos os momentos da sua vida. É daqueles que deve ter tido em casa uma empregada de uniforme para lhe levar o pequeno-almoço num tabuleiro”, garantiu o Álvaro, com o sorrisinho inocente de um cordeiro.

            “Dizes isso debaixo de um fato Ermenegildo Zegna, que custa milhares de euros, de uma camisa branca Lourenço & Santos com monograma. Já para não falar da gravata e do lenço Salvatore Ferragamo…”, rosnei, furioso com o ataque descabelado à origem social do Ivan. “E por acaso ele tem culpa de ter nascido num meio favorecido? Que diabo querias que ele fizesse? Que renunciasse à família, saísse de casa e fosse viver para um bairro pobre, nos subúrbios de Lisboa? O que nós queremos é que todos tenhamos vidas confortáveis e não que as pessoas passem a ter vidas mais difíceis. O problema não está nas vidas confortáveis, está nos usos que lhes damos”, contra-argumentei.

            “O Ivan é incapaz de limpar uma cozinha, passar a ferro uma camisa ou preencher a declaração do IRS”, voltou à carga o Ricardo, com um simplismo tosco, totalmente desnecessário.

            “Pode-se criticar o mundo actual a partir da praia ou instalado no conforto. Além disso, eu também não sei preencher a declaração do IRS, muito menos passar uma camisa a ferro. Mas gosto de fornicar. Fornicar a toda a hora. Fornicar distrai e descontrai”, tagarelou o Fernando (felizmente, nesse preciso instante, passou na avenida uma ambulância com a sirene ligada, abafando aquelas últimas palavras, que encerravam abismos de sabedoria).

            “As ideias que defendemos devem ser julgadas pelos seus resultados teóricos ou práticos, não a partir do sítio onde foram formuladas”, ciciou o Bernardo.

            “A mim, o que me chateia nesta esquerda festiva, de que o Ivan Nunes é uma caricatura viva, é a constante auto-referencialidade. Para ele, ir a um filme do Woody Allen, do Nanni Moretti ou de outros é como ir à missa ao domingo. Avalia a vida através do consumo de certos bens culturais. Tem o ar blasé dos privilegiados, dos que nunca sofreram a angústia da falta de dinheiro. Só na aparência é que está comprometido com os desfavorecidos. Um homem como ele, que nunca passou dificuldades, que nasceu em berço de ouro, só na aparência é que está empenhado numa mudança radical. Só na aparência é que está disposto a sujar as mãos para acabar com o fundamento desigual e injusto da nossa sociedade”, afirmou o Alberto.

            “Ao menos, já que é socialista, podia doar uma parte do seu dinheiro para a descoberta de um micróbio qualquer”, obtemperou o Ricardo (há anos que tinha vontade de usar num texto o verbo “obtemperar”, uma daquelas palavras que só existem escritas).

            Uma brisa ligeira, finalmente, fez-se sentir, fazendo ondear o meu cabelo.

            “O Ivan pode até ter muito dinheiro, mas a verdade é que escolheu ser de esquerda, defender os interesses das classes desvalidas. Podia ser um conservador e não um progressista. De certo modo, renega a sua classe de pertença, aquela em que está integrado por factores objectivos como o rendimento, a educação escolar, etc.”, disse eu, pondo-me a olhar para o casal de namorados da mesa ao lado, com um pouco mais de 20 anos, a beber por palhinhas da mesma bebida (não me desagradaria ter outra vez 20 anos, ser outra vez jovem e estouvado…).

            “Goodbye Maria Ivone! Estás a querer ter piada, ou quê?”, disse o Bernardo, girando a cabeça para mim. “És formado em sociologia e dizes uma coisa dessas? Viver debaixo da mesma redoma, vegetar no mesmo húmus, faz com que as pessoas adoptem, nem que seja inconscientemente, os mesmos valores, tal como tende a nivelar os seus comportamentos. A bolha cultural e mediática em que o Ivan se integra vive numa completa marmelada de interesses. É isso que, de certo modo, explica a contradição entre as ideias dele e a sua prática, entre o seu discurso ideológico e o teor dos seus actos”.

            “Já viram a fotografia dele nas redes sociais, com um disparatado capacete na tola?”, perguntou o Ricardo. “O capacete assenta-lhe tão bem que parece ter sido feito já com a cabeça dele dentro”.

            “Não precisas de ser tão realista”, crocitou o Álvaro.

            “A diferença entre esta esquerda caviar (ou festiva) e a direita da Lapa e do Restelo é meramente formal: uns cumprimentam-se com dois beijinhos, outros apenas com um. Nuns e noutros, os códigos de consumo não têm um valor ou um sentido para além da sua própria ostentação”, complementou o Fernando.

            “E a esquerda organiza jantares-tertúlia, a direita vai a vernissages. A esquerda diz que uma coisa ‘é interessante’, a direita diz que ‘é gira’. A esquerda fala da minha ‘companheira’, a direita diz ‘namorada’. A esquerda comemora os ‘anos’, a direita o ‘aniversário’; a esquerda vai a um ‘funeral’, a direita a um ‘enterro’; a esquerda vive numa ‘vivenda’, a direita numa ‘casa’, a esquerda usa a ‘sanita’, a direita a ‘retrete’”, juntou o Álvaro.

            “A esquerda passa férias na costa alentejana, em Cacela Velha, Cabanas ou na Manta Rota (que, entretanto, perdeu algum do seu encanto, por causa do Pedro Passos Coelho), a direita vai para Moledo do Minho, para a Praia Grande ou para Sagres. Os queques de esquerda estudam no colégio Fernão Mendes Pinto, no Pestalozi, na escola básica da Ponte ou no Moderno, a direita frequenta o Planalto, o São João de Brito, o São Tomás, o Saint Julian’s, o Ave Maria ou o Sagrado Coração de Maria. A esquerda gosta de Zeca Afonso, a direita de José Cid”, agregou o Bernardo.

            “A esquerda vê o Terra e Liberdade, do Ken Louch, o Bowling for Columbine, do Michael Moore, e os filmes de Pedro Almodovar e do Nanni Moretti, a direita o Top Gun, com o Tom Cruise e a Kelly McGillis, o Rambo, do Stallone, e o Dirty Harry, do Clint Eastwood. A esquerda cita Marx, Gramsci, Althusser, Michel Foucault, Alain Badiou e Boaventura de Sousa Santos, a direita cita Adam Smith, F. J. Hayek, Isaiah Berlin, Milton Friedman, Karl Popper, Raymond Aron, Michael Oakeshot e Vasco Pulido Valente; a esquerda lê o Guardian, o Le Monde Diplomatic e o El País, a direita lê o Wall Street Journal, o Financial Times ou a Spectator“, completou o Ricardo, com a voz como uma lixa grossa.

            “Quer sejam de esquerda, quer de direita, os queques funcionam como tribos, deslocam-se em manadas. Seguem as regras das respectivas hordas. E, em geral, são altamente conformistas. Aliás, as castas sempre foram conservadoras. O principal objectivo das castas dirigentes – políticas, económicas e culturais – é servir os seus próprios interesses, manter o seu próprio poder e os seus próprios privilégios”, concluiu o Bernardo, como se tivesse acabado de enunciar uma verdade universal.

            “A tendência das elites é para identificarem a boa cultura com a sua cultura, revelando um certo racismo para com aqueles que praticam uma outra cultura. Os queques de esquerda gostam de parecer que são muito de esquerda quando se trata de falar, mas se arranharmos um pouco a superfície, vemos que não são muito diferentes dos queques de direita”, acrescentou o Álvaro.

            “A mudança não virá de pessoas como o Adão e Silva ou o Ivan Nunes. A mudança virá de baixo, dos precários mobilizados”, defendeu o Fernando, levantando um milímetro de sobrancelha.

            “A esquerda salvou este país. Em Portugal, as pessoas esquecem muito depressa”, disse eu friamente, mas a arder por dentro, com o coração batendo como um tambor. “O Ivan é um devoto do serviço público, está contra as injustiças, as desigualdades e as discriminações sociais. Defende uma maior redistribuição da riqueza”.

            “A idade costuma engolir esses nobres sentimentos. Os belos princípios do Ivan estiveram sempre instalados no bem-estar e no conforto, nunca passaram de adereços do espírito para exibir nas conversatas de salão. Nele, os motivos para agir, para lutar ou para protestar quase nunca têm referência a factos concretos. Porque ele não tem razões objectivas, reais ou materiais para agir e para lutar. Só tem ideias abstractas e românticas”.

            “O João Pedro tem razão. Estamos a desviar-nos da questão principal: o Ivan Nunes é um dos que vai receber a massa das bolsas do concurso ‘Escrita pela Democracia’. Isto apesar de, pouco tempo antes, pertencer à estrutura que concedeu a bolsa”, lembrou o Alberto, tentando reintroduzir alguma ordem na discussão.

            “Tenho uma certa admiração pelo descaramento dele”, confessou o Álvaro, desprendidamente.

            “Devia ter vergonha de si próprio”, rugiu o Fernando.

            “E, no meio disto, como é que fica a Estrutura de Missão?”, perguntou o Bernardo.

            “A Estrutura de Missão é uma manjedoura de clientelas, uma grande plataforma de troca de favores. As clientelas das elites têm de ser servidas. Quem está no poder tem de tomar conta dos seus. E nós não sabemos nem metade da coisa”, arriscou o Fernando.

            “Tudo isto é feito a dois palmos dos nossos narizes e ninguém faz nada. Semanticamente, o termo ‘clientelismo’ parece mudar quando o aplicamos às pessoas de esquerda, sobretudo na Cultura. Aí, todos são excelentes, todos merecem os cargos para que são nomeados, todos têm os currículos adequados. A esquerda diz-se contra a ideologia do mérito, mas quando é criticada recorre ao mérito. Na Cultura, tratando-se dos amigos, a esquerda desvaloriza o clientelismo. Se fosse um banqueiro, um político de direita ou um grande empresário capitalista, caía o Carmo e a Trindade”, perorou o Bernardo.

            “Que os amigos de esquerda finjam não compreender, é tão natural como um iogurte acabado de fazer. Todos fingem não ver, todos observam a regra do silêncio. Têm todos a mesma forma mentis eclesiástica”, disse o Alberto.

            “O desejo excessivo e despudorado de ganhar dinheiro, seja na esquerda, seja na direita, adequa-se na perfeição ao sistema de valores dominante”, disse o Álvaro. “Mas desde quando é que o Ministério da Cultura e a Estrutura de Missão foram ocupados pelas irmãs da caridade?”.

            “Não sei. O que sei é que, a alguns, basta-lhes abanar as árvores certas para conseguirem dinheiro. Por exemplo, o dinheiro para o festival FeLicidade apareceu mais depressa do que vocês são capazes de dizer Ivan Nunes”, lamentou o Bernardo.

            “Não fazemos a menor ideia das forças que interagem por trás da Estrutura de Missão”, disse o Alberto.

            “Mas afinal qual é o projecto dele?”, perguntei.

            “O refluxo da 3.ª vaga: Portugal, Brasil e Argentina”, respondeu o Álvaro.

            “Esplêndido! É uma grande ideia, uma das quatro grandes ideias que aparecem em cada século, como dizia o Camilo”, exclamou o Ricardo, levando o indicador aos lábios e tocando-o com a ponta da língua.

            “A produção intelectual dele sobre a história do 25 de Abril e os estudos comparativos deve ser impressionante. O que é que ele já escreveu sobre as dinâmicas políticas culturais, sociais e económicas da Revolução, a resistência e a luta antifascista, o colonialismo e a descolonização, ou sobre a consolidação democrática e a qualidade da democracia?”, questionou, amargamente, o Alberto, com um tom de voz que parecia vindo do interior de um frasco de pickles.

            “Mas vocês acham que o Ivan teve alguma coisa que ver com a constituição do júri do concurso?”, perguntei. “Ele não é pessoa para aproveitar uma oportunidade em seu proveito pessoal. Ele não pertence a esse tipo de gente”.

            “Talvez sim, talvez não. Que sei eu. Não vivo na cabeça do Ivan. Mas a atitude dele presta-se a este tipo de elucubração, justifica todas as suspeitas”, respondeu o Bernardo.

            “Mas o que ele fez não é legal?”, perguntei.

            “Se é legal? Sim. Mas é bonito? Não”, respondeu o Alberto, sem mover uma pestana. “Revela falta de sentido ético. É uma questão filosófica que o Ivan Nunes devia propor à sua consciência. Mas isso exige uma dose de honestidade demasiado grande em relação a si próprio, que não sei se ele terá”.

            “Não vale a pena estar com paninhos quentes. O que ele fez é asquerosamente pouco ético. Parece tão infantil que o devia embaraçar”, agregou o Ricardo. “Os períodos de nojo na política são uma lei não escrita que ele deveria ter respeitado. Não existe uma maneira menos cruel de dizer isto: a atitude de Ivan Nunes é repugnante. São estes comportamentos que denigrem a esquerda. Isto não é uma monarquia, é uma democracia”.

            “Ou, como diria o Ivan Nunes da Política XXI, em 1994, cheio de esquerdíssimo zelo: ‘Isto só contribui para a degradação da imagem da política’”, rematou o Fernando. Mas acertou na trave.

O artigo acima motivou um direito de resposta que pode ser lido aqui