Retalhos da vida

Muitos factos e interpretações da nossa História que se deram por adquiridos estão longe da verdade. É preciso revisitar os acontecimentos com a cabeça limpa, sem ideias feitas nem preconceitos ideológicos, escalpelizá-los, reduzi-los ao osso, e tentar a partir daí construir uma nova história, mais fresca, mais viva, menos teorizada e mais real.

Quando deixei a direção do SOL em 2015, ficando como meu sucessor (com vantagem) o Mário Ramires, passei a dedicar-me mais intensamente aos livros.            
Enquanto dirigi jornais – primeiro o Expresso e depois o SOL – nunca deixei de publicar livros, mas a falta de tempo para investigar levou-me a escrever romances e memórias. O tipo de livros que tinha publicado antes de entrar para o Expresso em 1983 – Do Estado Novo à Segunda República, O 28 de Maio e o Fim do Liberalismo (com Júlio Henriques), O 25 de Abril Visto da História (com Vicente Jorge Silva), ou mesmo O Palácio de Belém – exigiam uma pesquisa que deixei de ter condições para fazer. A direção de um jornal é um trabalho muito absorvente.

Ao deixar a direção do SOL, 32 anos depois de ter abraçado profissionalmente o jornalismo, publiquei um livro ultra-polémico – Eu e os Políticos – mas depressa senti o apelo de escrever algo menos efémero. Que ficasse.

A faísca surgiu na elaboração de um texto sobre a queda de Salazar. Aí, havia muita coisa mal explicada. Por que nunca apareceu a cadeira? E por que razão as três pessoas que diziam ter testemunhado a queda apresentavam três versões diferentes e contraditórias entre si? Daí à descoberta da verdade foi um longo mas apaixonante caminho.

E de repente, quase sem ter consciência disso, constatei que tinha retomado o caminho que abandonara em 1983.

A investigação sobre a queda de Salazar alargou-se, e acabou por dar origem a uma história do Estado Novo, publicada em três volumes, a que chamei Estado Novo: A História Como Nunca Foi Contada.

O título parece presunçoso, mas resulta do facto de ter verificado que há na história recente de Portugal muitas coisas mal contadas. Muitos factos e interpretações que se deram por adquiridos, como a queda de Salazar da cadeira, mas que estão longe da verdade. Percebi que é preciso revisitar os acontecimentos com a cabeça limpa, sem ideias feitas nem preconceitos ideológicos, escalpelizá-los, reduzi-los ao osso, e tentar a partir daí construir uma nova história, mais fresca, mais viva, menos teorizada e mais real.

E esse livro deu lugar a outro. Eu tinha estudado o exercício do poder por Salazar. Mas como fora possível um homem como ele ter chegado lá acima? Como se tinha imposto, não sendo militar, não sendo chefe de um partido, sendo um homem humilde e solitário? Daqui nasceu o Salazar e a Sua Época, em dois volumes.

E umas coisas puxam outras.

Ao estudar o tempo da juventude de Salazar – o fim da Monarquia e o início da República – deparei-me com algo que soava estranho.

Quando se deu o assassínio de D. Carlos, Afonso Costa estava preso em Lisboa, no quartel do Cabeço de Bola. E no seu Diário da Prisão diz ter ouvido guardas a comentar que o Rei fora morto, mas não acreditara. E durante os dias seguintes não faz qualquer referência ao assunto. Ora, estando ele detido num quartel no centro da capital, e sabendo-se que os grandes acontecimentos rapidamente atravessam as paredes das prisões, como explicar o seu desconhecimento?

Percebi de imediato que Afonso Costa estava a esconder alguma coisa. E investigando a sua vida nos meses que precederam o regicídio, fui somando factos que me levaram a perceber a sua participação no crime.

Isto passava-se no princípio do séc. XX. Exatamente 100 anos antes, a família real fugira para o Brasil, numa circunstância que sempre me intrigou. E é nisso que atualmente trabalho. Nesse período que é ‘o mais triste da história de Portugal’ – e que inclui a fuga, o tempo no Rio de Janeiro, o regresso, a guerra civil entre os irmãos D. Miguel e D. Pedro pelos despojos da pátria, a morte de D. Pedro. É um tempo desvairado, alucinante, protagonizado por uma ‘desgraçada família’, como lhe chamo.

Também nesta pesquisa verifico que há muitas coisas mal contadas. A história é sempre escrita pelos vencedores. E a propaganda liberal influenciou muitos historiadores e levou a distorcer vários factos decisivos.

Desde o momento em que deixei a direção deste jornal, em 2015, já publiquei seis livros históricos de algum fôlego (três sobre o Estado Novo, dois sobre Salazar e um sobre D. Carlos). Não sei se ainda vou a tempo de investigar e escrever tudo o que quero. Para já, o objetivo é acabar este livro. Depois se verá. Os treinadores de futebol dizem que vão ‘jogo a jogo’. Eu digo que vou ‘livro a livro’.