Há uns anos largos, num processo cível em que patrocinava um Réu, organizei as alegações finais em redor da expressão ‘ciência do táxi’, querendo com isso aludir à falta de prova da parte contrária e ao facto de procurar compensar essa falta com um excesso de impressões. Ou seja, a parte contrária levou todo o julgamento a dizer ao tribunal que ‘achava que’, que ‘se estava mesmo a ver que’ e ‘que não podia ser outra coisa senão o que lhe parecia’; porém, prova, prova que é bom, nada; só um estendal de ‘está-se mesmo a ver’, e com muita veemência. Depois, em 2011, no meu ‘Mapa-Múndi da Justiça’, publiquei um texto com o título A Ciência do Táxi, em que contava a saudade, tida em Maputo, das convicções dos taxistas portugueses que sabem e opinam sobre tudo, verdadeiros cientistas do asfalto, versados em tudo e mais alguma coisa, com um saber sustentado em axiomas como ‘está-se mesmo a ver’, ‘porque sim’ e ‘porque não’.
Hoje, não só os cientistas do asfalto não desapareceram, como o seu modo de saber e de argumentar – aliás na esteira do que já acontecia então, mas a coisa intensificou-se – foi contaminando outras áreas da vida, o que aliás vai muito bem com os tempos modernos, nos quais a impaciência, a rapidez e a desintermediação dominam, tendo todos a verdade no bolso, à distância de um clique no aparelho maravilhoso, e a certeza na ponta da língua, à distância de um ‘acho que’ baseado em generosas impressões. E a Justiça, não só não podia escapar, como é campo privilegiado para a sementeira e a colheita do ‘está-se mesmo a ver’ e para os tentáculos da ciência do asfalto, por um lado porque a matéria-prima da mesma se presta a isso, por outro porque a Justiça é um dos temas mais queridos dos noticiários e da opinião pública e publicada.
E não é só o cidadão dito comum. Antes fosse, embora já fosse mau. Mas não é só, não; muitos não são imunes ao mal. Lembro-me disso muitas vezes, e regresso ao meu texto, como quem regressa, não onde foi feliz, mas onde teve razão. E lembrei-me bem disso, novamente, há pouco tempo, ao ler um acórdão de um caso badalado. Escreveram assim os três Juízes, a respeito da determinação da medida da pena, e cito da página 642 da decisão : «Se bem que a corrupção seja um fenómeno antigo, hoje em dia – uma época em que os escândalos financeiros e a corrupção desenfreada e protagonizada pelas elites atingiram níveis desproporcionados – é objeto de particular atenção e preocupação por parte da comunidade …». Ora, ocorre-me perguntar qual a base da afirmação dos senhores Juízes de que a corrupção desenfreada e protagonizada pelas elites atingiu níveis desproporcionados? Que estudos leram? Que estatísticas existem? Onde está historiado o fenómeno da corrupção? Quais as fontes e as provas dessa afirmação supostamente factual? Que sabem os subscritores do acórdão sobre a corrupção antes e agora? E o que é ‘desenfreado’ e ‘desproporcionado’? Eu não sei, eu não conheço os números da corrupção antes e agora, não sei onde estão os estudos, nem as estatísticas, et cetera. Sei, sim, que há muitos processos e que se fala muito nisso. Mas isso não é a mesma coisa – nem de perto nem de longe – do que ser a corrupção desenfreada e tudo o mais que ali está afirmado.
Isso são impressões, são ‘ciência do táxi’, que ficaria muito bem numa conversa de café, ou até numa rede social, mas não num documento da República que decide um processo-crime. Este tipo de pinceladas soltas não é para aqui, são pinceladas próprias da pintura impressionista, aquela onde o ‘ver’ assume outro sentido, que é o de selecionar, recortar e modelar de acordo com o objeto que se observa; os artistas do impressionismo selecionam a impressão como uma experiência importante a ser valorizada. E eu, pelo meu lado, tenho a impressão de que isto, por este caminho, não vai correr lá muito bem. Como diria o cientista do táxi, ‘está-se mesmo a ver’. Ai está, está. Ou talvez não. Espero, quero esperar, que seja apenas a indolência que o estio traz a tudo, até ao otimismo.
Advogado