Que as estrelas morrem ensina a ciência/ numa espécie de obituário absoluto. os versos são de Eucanaã Ferraz, mas vêm a propósito da despedida de uma das poucas fadistas que, para além de uma verdadeira noção do espetáculo, esse que deve maquilhar-se com as cinzas do espavento que hoje nos é oferecido sem a capacidade de ser belo ou feio, ficando muito longe de qualquer traço de originalidade, ela percebeu essa necessidade de trazer uma vida nova que começasse por fazer o luto dos velhos e cansados hábitos. Afinal, também a luz provoca vertigens, e Mísia soube chegar cedo quando os outros supõem que é já tarde demais para fazer o que sempre deve ser feito. Ela contou como lhe foram sendo levantados obstáculos de cada vez que procurou trazer um novo respiro a uma tradição que tardava em homenagear no sentido mais profundo as mulheres, libertando-as do castigo de viverem na sombra. Contou como, aos 36 anos, quando se estreou, usou o melhor vestido que tinha, branco, de veludo, ansiosa por cantar pela primeira vez na Grande Noite do Fado, e como teve de esperar até às seis da manhã, sempre de pé para estar apresentável, e o veludo não exibir varizes, como foi sendo postergada e acabou em fim por ser acolhida por apupos da audiência depois de ser apresentada como «uma mulher estranha que quer mudar o nosso Fado». Era estranha, sim, por ter tido a coragem de não se disfarçar debaixo de um xaile negro, de não envergar essa modéstia que agrada a quem sempre entende a tradição como um regime mortificante, sobretudo para as mulheres. Gravou discos de fado com aquela perfeita noção de que «o Futuro é tão antigo como o Passado» (Cesariny), sabendo compor um repertório original, que começa por não abdicar do sentido de invenção, confiando na sua intuição que, segundo ela, pode ser uma das formas mais vitais da inteligência nos guiar, e, assim, cantou as palavras de nomes como Saramago, Agustina, Hélia Correia, Mário Cláudio, Vasco Graça Moura, Tiago Torres da Silva, Amélia Muge, Jorge Palma, Vitorino ou Sérgio Godinho. Como assinalava o jornalista e crítico musical Nuno Pacheco, se por vezes passava por dura e ríspida, não era mais do que uma forma de defesa contra a mediocridade. «Nos estúdios e palcos do mundo, soube rodear-se de grandes criadores (poetas, músicos, arranjadores) que iam dando forma a tudo quanto lhe ia na cabeça (…)».
Susana Maria Alfonso de Aguiar, nascida no Porto, a 18 de junho de 1955, de mãe catalã e pai portuense, foi ali que começou a cantar nas casas de fado, quando tinha apenas 16 anos, e só pelos 20 foi para Barcelona e depois para Madrid, por razões familiares. Adotou o seu nome artístico depois de ler a biografia de uma musa parisiense de origem polaca nascida em São Petersburgo, na Rússia dos czares, no ano de 1872: Maria Zofia Olga Zenajda Godebska, que, próxima dos grandes das artes na cidade das Luzes, entre eles Proust, Debussy, Monet, Renoir, Toulouse-Lautrec ou Coco Chanel, sendo conhecida pelo diminutivo polaco de Maria, Mísia. Acabou por morrer no passado sábado, aos 69 anos, depois de ter vivido um largo período numa espécie de limbo, depois de no espaço de um ano lhe terem sido diagnosticados dois cancros. Aguentou quanto pôde, acolhendo o conselho que lhe deu certa vez Manoel de Oliveira, dizendo que em Portugal só há uma estratégia: «Insistir, insistir, insistir». Assim fez. E venceu como estrangeira a esse outro cancro que Portugal é, servindo-se das portas de serviço que Amália abriu para continuar a renovação do fado, cantando cá dentro e lá fora para desmanchar a ideia de que o fado é uma coisa triste e tétrica, feita só de passado, alérgico ao futuro.