Idosos que cuidam de idosos e a falta de rede social

Idosos abandonados nas urgências é já uma prática usual no SNS. População mais velha e doente, falta de rede social e famílias sem condições para garantirem o apoio aos seus idosos são as causas.

Sempre que mais relatórios, números e balanços são publicados, os relatos de histórias dramáticas sobre idosos abandonados nos hospitais enchem páginas dos jornais e são motivo de reportagens televisivas. Uma realidade que tem aumentado todos os anos e que se está a tornar perigosamente banal. O circuito é quase sempre o mesmo: “Dão entrada devido a um episódio de urgência agudo e já com um quadro clínico bastante frágil. Passados uns dias passamos o doente para outra unidade de convalescença, de cuidados continuados. Mas quando já não há nada que se justifique o seu internamento, começam os verdadeiros problemas. Percebemos com facilidade quando há resistência da parte das famílias ou de quem cuida destes doentes em os vir buscar ao hospital caso seja dada a alta e os médicos adiam as altas para dar tempo às famílias para se organizem”, relata uma enfermeira da ULS Lisboa Ocidental.

Há cada vez menos famílias com capacidade e disponibilidade para garantir os cuidados pós-hospitalares a esta população idosa. E os doentes vão ficando. Ou porque não há ninguém que os possa vir buscar ou pela carência de meios da rede social que não chega a todos. O número vai engrossando, conforme a população vai envelhecendo, as doenças vão surgindo assim como o aumento da esperança de vida. 

“É todo um ecossistema que vai influenciando negativamente esta realidade: há dificuldade em dar respostas sociais às necessidades, os hospitais vivem com falta de médicos e de meios e as famílias em grandes dificuldades”, diz Rita Valada, presidente da Cárita. Mas este não é um verão diferente dos outros, afirma esta dirigente. Uma vez que mais uma vez não houve um plano de prevenção ou de contingência para acautelar as férias dos médicos e do profissionais de saúde, assim como o direito ao descanso dos cuidadores. E no verão esta drama aumenta invariavelmente. 

Idosos cuidam de idosos

Manuel tem 89 anos e Emília, sua mulher, 87 anos. Estão quase sozinhos no mundo e apenas podem contar com a filha de Emília que está perto dos 70. Com a alta que teve do hospital, trouxe também  uma longa lista de remédios, prescrições de tratamentos, de cuidados alimentares e uma rigidez horária que quase exige uma tabela de excel e noites mal dormidas para fazer cumprir as recomendações médicas. Depois de dois AVC, um ataque cardíaco e um doloroso diagnóstico de diabetes, Manuel precisa de uma dedicação quase plena. A enteada, tem netos, ainda trabalha e ajuda os dois filhos a cuidarem das suas famílias. Vive longe e sem tempo. Manuel conta com a mulher também idosa para não se esquecer de tomar os remédios mas precisa da enteada para as idas aos tratamentos. Por isso, sempre que sai dos internamentos é um pesadelo logístico. Esperam todos por um lugar na rede social, mas os meses passam e a resposta não há meio de vir. 

Matilde, com 80 anos, vive sozinha e por causa de uma infeção urinária deu entrada no Hospital Amadora-Sintra. Passou lá perto de duas semanas até que finalmente teve alta. Sem meios nem suporte familiar para sair do hospital, contou com o transporte hospitalar para a levarem de volta a casa. Quem a recebeu foi a vizinha que vai cuidando da amiga sempre que pode. Sem elevador no prédio de seis andares, falhou todos os tratamentos a que tinha de comparecer para que novo internamento não fosse necessário.

São casos como estes que enchem as camas dos hospitais e que transformam as unidades de saúde em centros de internamento social. A determinada altura torna-se difícil perceber a fronteira entre a necessidade de internamento: se é o quadro clínico, se prevenção ou por apoio social.

Famílias sem capacidade

No verão e nas alturas festivas, o drama dos idosos abandonados nas urgências hospitalares aumentam. Entram com uma situação aguda, mas quando já têm alta clínica não há quem tenha disponibilidade em os recolher. “Um idosos com multimorbilidade tem sempre um razão para ir às urgências: desidratação, infeções urinárias, dificuldades respiratórias, etc. Depois, quando tem alta e contactamos a família, explicam que só podem  ir busca-lo no final da semana ou passados uns dias, que coincide com o final da época ou do fim de semana”, conta um médico do serviço de urgência do Curry Cabral. “No  verão é mais difícil perceber. Uma vez que as famílias não vão todas de férias ao mesmo tempo. Mas é previsível que o abandono temporário cresça sempre neste período”.

Outra das entropias que agrava este drama no SNS é a falta de conhecimento da rede. As famílias e os utentes têm pouco conhecimento dos circuitos e não sabem que aquilo que podem exigir, como aceder aos serviços indicados, quais os processos e procedimentos que devem seguir. Seja para serem encaminhados para a rede de paliativos, para acederem à rede social, ao apoio domiciliário ou às terapias. E “como a porta de excelência no SNS continua a ser as urgências, é por aqui que o problema se agrava”, explica um enfermeiro que trabalha há mais de 20 anos nos serviços de urgência.

Também se dá o caso mais comum  da insegurança e falta de capacidade das famílias em conseguirem ser o suporte dos idosos em casa, o que os força a atrasarem irem buscá-los aos hospitais. “Todos os dias temos casos em que telefonamos às famílias a informar que os seus familiares já têm alta e respondem-nos que não podem ir, ou por falta de disponibilidade ou porque não têm com quem deixa-los. E eles vão ficando”.  O enfermeiro diz que há uma desresponsabilização dos serviços da saúde em relação a este drama, uma vez que muitos destes utentes têm alta sem ter a assistência social para garantir o apoio, reclama o enfermeiro. Regra geral são internados nos cuidados continuados, pois “nos lares só há vaga quando morre alguém”. E desabafa: “As pessoas estão muito idosas e muito doentes. Temos idosos a tratar de idosos e isso não é viável”. 

Rita Valada garante que este não é problema novo:  “Há quem não tenha recursos, os cuidados continuados não chegam e este é um problema crítico que preocupa o setor da saúde porque dificulta tudo e também as famílias”.