Posso gelado? Posso telemóvel? Posso Playstation? Posso bicicleta? As perguntas chegam sem verbos como se os substantivos vivessem sozinhos. Fazer o quê com a bicicleta? Como não é comestível nem se veste, só pode ser andar de bicicleta. Respondemos sem corrigir, somos cúmplices desta fala sem pernas para andar, sem ligações, sem lógica gramatical.
Está em curso o assassinato do português falado. E é premeditado. Uma vez que não é por ignorância, é por preguiça. Um homicídio por negligência, com dolo preguiça. Dá menos trabalho ir direto ao assunto e não completar frases. Predicado, sujeito, artigos definidos ou indefinidos, complemento direto e indireto são regras gramaticais reservadas para a disciplina de Português. Não são para usar no dia-a-dia. Os miúdos falam em modo de emojis, como se fossem a versão em alta-voz das mensagens minimalista que enviam uns aos outros pelas redes sociais. Cortam palavras inteiras e cortam sílabas sem dó nem piedade. Os verbos são as vítimas mais visíveis deste novo tipo de fala. Dói só de ouvir. Sabemos que falta alguma cosia, mas deixamos passar numa vénia indevida aos mais novos que reinam no mundo dos adultos.
O problema começa nos adultos. Falamos com os bebés como se fossemos bebés, quando na verdade já sabemos falar e construir frases completas. Mas regredimos quando temos um bebé nos braços. Perdemos a fala, o discernimento na construção de frases na convicção de que eles nos percebem melhor se falamos mal, se falarmos como eles, sem vocabulário, sem frases completas, num tom nasalado e infantil. Mas os bebés crescem, é suposto aprenderem com quem sabe falar, assim como é suposto aprenderem a escrever com que sabe escrever. Só que nós decrescemos. O bebé qué bola com o papá? Agoa vai ó ó. Parecemos parvos.
Neste massacre, estão a ser sacrificadas palavras e sílabas. Inventa-se uma nova língua como se fossem sinais de fumo que só os próprios entendem. É uma língua feita de siglas e de palavras inventadas, de sons que rimam ou nem isso. De consoantes soltas que de repente ganham vida. Abreviaturas que são transformadas em verbos e verbos que são transformados em nomes.
Entre a linguagem dominante nas redes sociais e a ignorância de quem nunca teve de construir frases completas sem ser nos testes de português, nasce um novo dicionário. Tasse, quer dizer, está tudo bem. Oi, mano, tótil, tóti, bro, tipo, bué, bué da bacano, bué da nice, já foste, fatela, lol. Há de tudo.
Wow, escreve-se e diz-se. Ganda pausa quer dizer grande estilo, assim como bueda cool, que vai dar ao mesmo. Voltou o date e o crush nos temas afetivos e é vulgar dizer ganda cena que tem o oposto em ganda fail. Cancelar é cortar com alguém e panicar é ter medo. Ninguém namora e curtir não se usa, diz-se sacar ou ficar com alguém porque não há compromisso. E temos o FOMO, sigla que quer dizer fear of missing out, ou seja, medo de perder alguma coisa divertida. Também não há amigas, há as migas e já não se usa a palavra nu mas sim nudes. Trocar uma nota em moedas, é destrocar e ninguém sabe porquê. Há mais, muito mais. Mas aquilo que me incomoda mais é o chuto no rabo dos verbos em todos os tempos. Sinal de que não se tem tempo para falar.