O Matuto e a Marmelada

Naturalmente, que a expressão “marmelada” traz água no bico. Tem a ideia de beijos e abraços de intenções sensuais quando usada na sua forma informal – é o célebre “amasso” aqui no Brasil.

matuto = diz-se de quem vive no mato e a quem falta traquejo social; caipira; matreiro.
O verbo matutar, significa meditar ou ponderar.

O Matuto gosta de marmelada. Não aquela mistela industrializada da Auchan ou do Continente, mas marmelada genuína. Pois bem, estando impossibilitado de botar o pé na rua, por imposições laborais, o Matuto deu em garimpar inspiração em memórias congeladas. Farrapos empoeirados. Velhos tópicos. Personagens de antanho. As línguas de gato. O Sumol. A farinha alimentícia Predilecta. A Pasta medicinal Couto. O creme Nivea. O pudim Boca Doce (é bom, é bom, é!). O ‘papel selado’. O leite Vigor. As patilhas elásticas Gorila. O almanaque Borda d’Água. A água mineral Castello. O whiskey VAT 69. O refrigerante Laranjina C. Os jipes UMM. Os rebuçados peitorais Dr. Bayard. Os lápis Viarco. Os cadernos da Emílio Braga. Os chocolates Regina. E, enfim… a marmelada. A genuína. Feita pelas monjas de Odivelas. Conta-se que a vida das monjas era tão calma, tão calma que elas podiam passar horas a fio, fervendo a polpa triturada dos marmelos que depois misturavam com açúcar em calda. Era um processo moroso e ‘amoroso’. Mais tarde a marmelada era vendida em blocos e cortada em cubos para vender ao público. O Matuto recorda-se das mercearias que pesavam a granel os cubos de marmelada bem embrulhados no típico papel pardo. As memórias do Matuto… o Matuto também se recorda duma bela tarde de verão em que a família recebia uma senhora francesa para o lanche da tarde. Uma senhora fina, francesa nem mais. Havia café e uns biscoitos na mesa, e um belo cubo de marmelada lustrosa e apetitosa. A conversa fluía e o Sr. João, insigne pai do Matuto, oferece um pouco de marmelada à senhora fina, francesa. Dona Celeste, graciosa mãe do Matuto, pergunta solícita: “têm marmelada lá na França?” O Sr. João, insigne pai do Matuto, responde com ironia mal disfarçada: ‘Oh, filha! Marmelada há em toda a parte do mundo!’ Dona Celeste, graciosa mãe do Matuto, corou. O Matuto, embatucou. A senhora fina, de França nem mais, estacou. Não tinha entendido patavina do que se passava… E assim ficou porque ninguém a elucidou. Naturalmente, que a expressão “marmelada” traz água no bico. Tem a ideia de beijos e abraços de intenções sensuais quando usada na sua forma informal – é o célebre “amasso” aqui no Brasil.

Ora bem quando o Matuto chegou ao Brasil o equívoco com a expressão “marmelada” era inevitável. Numa bela festa de Natal, estava “todo o mundo” (para usar a expressão Brasileira) participando (para usar o gerúndio Brasileiro) do “amigo secreto” (para referir um jogo Brasileiro), quando se solta a grito escandalizado: “Marmelada! Marmelada! Marmelada!” O Matuto pulou de susto. O que justificava tamanha ira bem-disposta? Parecia que se instalara uma indignação alegre, embora o tom de denúncia fosse claro. Que aconteceu? Só mais tarde o Matuto percebeu que “marmelada” se referia a uma combinação prévia ou desonesta de um resultado, ou jogo. Os “amigos secretos” do jogo em questão eram marido e mulher. Tinha havido trapaça, batota, artimanha, cambalacho… ou seja: “Marmelada”. O Matuto acha deliciosa (palavra adequada) a origem desta expressão popular. “Marmelada” começou a designar uma acção desonesta ou ilegítima por causa do hábito, nada honesto, de fazer render o doce de marmelo. Como? Juntando-lhe o insípido chuchu. Obviamente, o freguês era enganado e não gostava. Mas adiante!

O Matuto meditou no facto das docerias serem muito versáteis. Por exemplo, como encarar a palavra bélica “bala” (no Brasil) e daí chegar à conclusão de que falamos de rebuçados!? Dá que pensar… (Já agora, os rebuçados também eram originalmente embrulhados em papel pardo.) E como decifrar que o famoso chupa-chupa de Portugal é o singelo “pirulito” no Brasil!? Qualquer cidadão Brasileiro menos precavido pensaria que chupa-chupa poderia ter conotações menos púdicas. Certo? Ok, adiante…

Voltemos a Odivelas e às suas monjas de vida calma. O Matuto sabe de fonte segura que no Convento de Odivelas as visitas eram coisa régia. E as esbórnias eram de arromba. O Matuto consultou os anais da História e está em condições de divulgar que a madre superiora Paula Teresa da Silva (1704-1768) teve um caso com el Rei D. João V. Desse caso nasceu um filho, José. No entender do Matuto, a falta de vocação das religiosas (e sua vida calma), aliada à licenciosidade dos doces, fez com que o arcebispo Gaspar de Bragança, proibisse a confecção dos doces conventuais. Foi um cancelamento. Mas, foi sol de pouca dura. Rapidamente os doces galgaram os muros dos conventos e invadiram as ruas, as casas, os cafés, as mercearias… O Matuto afirma a pés juntos que ‘a cozinha e os doces nunca andaram longe da cama’, em Portugal… e no mundo! Daí, porventura, a expressão ‘lar, doce lar’.