Oslo, 10 de Setembro de 2003. No Estádio de Ulleval Rui Costa faz um passe providencial para um remate de primeira de Pauleta. Ao mesmo tempo que o momento mágico de uma vitória que nos fazia tanta falta, três dias após a derrota com a Espanha em Guimarães (0-3) e com as bancadas a insultarem Luiz Felipe Scolari, meu irmão para sempre, Sérgio Conceição dava, furioso, pontapés nas garrafas de água pousadas na linha lateral percebendo que não iria entrar em campo. Nunca mais foi chamado à selecção. Sabia porquê. Mas isso não o impediu de dar entrevistas questionando a razão da sua exclusão. Passo por cima do que aconteceu em seguida no balneário. Estava para lá das minhas funções, fico-me por aqui em relação ao assunto. Sobre a história do Príncipe e o Pobre do velho Mark Twain, sendo que, se a leram, o Pobre não tem nada de negativo em termos de estrutura intelectual, debruço-me em seguida para abordar a notícia com tudo de absurdo que ela tem de Sérgio Conceição ser o homem escolhido para tomar o lugar de um Roger Schmidt que já devia ter saído da Luz há muito tempo.
Mudo, por isso, de capítulo, mantendo os personagens. Ou os seus alter-egos. Faz parte da história do Benfica desde sempre que os treinadores sejam, de alguma forma, uma extensão dos seus presidentes. Foi assim com o príncipe húngaro Béla Gutmann, com o príncipe brasileiro Otto Glória, com o príncipe sueco Sven-Göran Eriksson (que entregou ao menino Rui Costa a camisola 10), e até antes dele com outro príncipe húngaro, Lajos Baroti. Jimmy Hagan e John Mortimore podiam não se príncipes, mas eram cavalheiros por inteiro. Toni era um príncipe apaixonado. Rui Vitória, a despeito das intermitências, era de uma lisura impecável. O treinador mais popularucho das derradeiras épocas bateu certo com o presidente do povo que o Benfica jamais teve: Jorge Jesus e Luís Filipe Vieira. Isto não é estatística; é a realidade pura e crua.
O anti-príncipe
Não preciso de trazer para aqui a minha amizade antiquíssima com Rui Costa: foi sempre um príncipe – no Benfica, na Fiorentina, no Milan e na seleção nacional. Que pode ligá-lo a um treinador de bofes na boca como Sérgio Conceição que, não esqueçamos, tantas vezes faltou ao respeito aos seus adversários diretos, aos encarnados mais do que todos? Desespero? Roger Schmidt pode não ter condições para dirigir uma equipa como a do Benfica, não tem certamente, mas ainda não lhe caiu completamente o pé para o chinelo. É um alemão aportuguesado, como já o descrevi, ao ponto de ser um portuguesinho conformado com a sua vida-vidinha, encolhendo os ombros a cada derrota como se não tivessem nada que ver com ele, mas não é um bruto. Bruto não é nenhum insulto: é uma forma de estar na vida. Sérgio Conceição terá muitas qualidades mas, provavelmente por ter tido uma vida dura e dorida, é pura e simplesmente desbocado. Salta-lhe a tampa e, como aconteceu nestes anos de FC Porto, passa por cima do clube, dos dirigentes e dos jogadores. O FC Porto de Sérgio Conceição só não foi mais Sérgio Conceição do que FC Porto porque sempre foi um clube que apreciou e acalentou esse tipo de personalidades, ainda que por vezes ultrapassem a falta de educação. Nunca foi assim com o Benfica. Recordem-se: na primeira vez que Roger/Rogério, o alemão mais português da Alemanha, decidiu mandar os adeptos assobiar para um lugar qualquer extremamente pouco germânico, começou a levar com garrafas na cabeça.
Como dizia o jagunço, personagem de Guimarães Rosa, «pãos ou pães é uma questão de opiniães». A opinião é minha e assino-a por baixo. Sérgio Conceição é o anti-príncipe e não o vejo ter um convívio saudável com Rui Costa, ainda por cima à custa de um Benfica que está afundado numa crise de identidade muito profunda que uma vitória sobre o Casa Pia não vai sequer disfarçar. Custe isto muito aos adeptos do clube da Luz, mas para mim a época vai ser um desastre igual à anterior. E já o escrevi vários dias antes da derrota em Famalicão. Receber Sérgio Conceição ao berros e a dar pontapés nas garrafas de água, atirando palavras insensatas sobre adversários e sobre os seus próprios jogadores, exibindo uma personalidade incontornável (que terá os seus apaixonados, pois então) que invade o espaço de quem está acima dele seria contrariar toda a filosofia de um clube que sempre se orgulhou dela. E ver Rui Costa à sombra de Sérgio Conceição, entregando-lhe o futuro como penhora para se manter como presidente, abalaria toda a forma como vejo um e outro. Porque também, com a consideração que tenho por ele, não consigo ver Conceição submeter-se à idiossincrasia benfiquista. Em Portugal é um homem do FC Porto (foi até mais do que o próprio FC Porto nas épocas recentes) e nunca deixará de o ser. Nem por dinheiro nem por ambição. A menos que agora toda a gente já se venda por um prato de lentilhas. Se assim for, já não está cá quem falou. E quem está a mais sou eu.