A minha mãe sempre disse que há traumas que fazem muito bem às crianças passarem. Nunca especificou quais são esses traumas, mas são mais ou menos 90 por cento das coisas que os fazem chorar. Também fala em pieguices, em vez de medos e usa e abusa dos termos rotina, hábitos, obrigações, responsabilidade. Fica doente com a quantidade de férias que os miúdos têm e insiste que no Verão “eles têm de fazer alguma coisa de útil”. Três meses de papo para o ar só serve para “embrutecerem”. “Fazer alguma coisa de útil” é um desafio incompreensível para a cabecinha dos meus adolescentes e jovens que qualificam como trabalho infantil ou trabalhos forçados, como estender roupa, lavar loiça ou mesmo fazer a cama. “Aquilo que fazem agora é o que vai definir o resto das vossas vidas”, sentencia com a certeza e a experiência que a vida e a idade lhe deram. Sublinharem as matérias, fazerem resumos, serem ativos todos os dias do ano, fixarem objetivos são algumas das condições de vida. É isso ou a indigência. Os miúdos não percebem estes vaticínios. Genuinamente, não entendem. Para eles a vida acontece não se planeia. E é feita de injustiças. Pequenas injustiças, que lhes condicionam o bem-estar. Porquê estudar nas férias? É uma contradição de termos. Porquê trabalhar ao fim de semana quando estes dois dias existem para dormirem e divertirem-se? No limite, quem lhes deu vida tem a obrigação de lhes dar tudo o resto, ou seja, tudo o que eles querem que vai muito para além daquilo que precisam.
Enviei o meu filho mais novo para um campo de férias. Foi lavado em lágrimas como se estivesse a ser deportado para uma frente de guerra. “Tenho medo de não voltar a ver os pais”, soluçava ele usando todo o arsenal de chantagem emocional que conseguiu ativar. Vacilei. Vacilo sempre. Por isso, nem o levei ao autocarro. Sabia que não iria aguentar o olhar de censura, de desilusão da minha mãe, quem sabe até do seu desprezo, perante a minha provável cedência ao choro.
Claro que acabaram por me ligar do campo. O menino é profissional em chantagem emocional, vulgo manipulação. Chorou horas a fio. Queixou-se de dores, de enjoos e só não desmaiou porque o corpo não obedeceu ao cérebro. “Se calhar é melhor falar com ele. Nós não sabemos bem como são os pais e como querem que se lide com estas situações…”. Foi uma conversa difícil: “Eu até estou a gostar disto, mas estou enjoado e com dores de cabeça, por isso têm de me vir buscar. Não é por causa do campo, é porque estou mesmo doente”, explicou ele. Mantive-me firme na convicção de que há traumas que fazem muito bem às crianças passarem. Um deles é estar longe dos pais durante uma semana com dezenas de miúdos no meio do nada, entre rios e serras sem telemóveis ou consolas. Tirei-lhe a esperança como se fosse um tapete que o mantinha de pé: “Não vou!”. Não havendo registo de sangue, fraturas, maus tratos ou febre, não se justifica atravessar o país cedendo a uma carinha de choro e a uma voz de desespero que até partiria o coração de Hannibal Lecter. Quando percebeu que tinha perdido a batalha, a criança endureceu o tom, o desespero emocional transformou-se em zanga e fúria. E foi quando perdeu a guerra. Chega depois de amanhã. Dizem que me custa mais a mim do que a ele. Concordo. Mas há traumas que fazem muito bem aos pais passarem. Afinal, os pais é que são uns mimados, os filhos só se aproveitam das suas fraquezas.