É uma das questões mais sensíveis e preocupantes do nosso tempo, mas poucos parecem dar-se conta disso. As crianças e jovens passam grande parte das suas vidas – entre quatro e seis horas por dia, segundo alguns estudos – a olhar para ecrãs luminosos. Alguns adultos também. Pode ser a jogar joguinhos repetitivos como o Cat Runner ou o Brawl Stars, a descobrir produtos baratos em lojas como a Temu ou a Shein, ou a ver vídeos de poucos segundos no instagram e no Tiktok. Parece inofensivo e para os pais até é um descanso – enquanto estão sentadas no sofá agarradas ao ecrã, as crianças não desarrumam a casa e não correm o risco de se magoar, ao contrário do que acontece se estiverem a andar de bicicleta ou de skate. Mas os aparelhos digitais também comportam perigos. Provocam adição, roubam o tempo a coisas mais importantes e, indo diretos ao assunto, estupidificam.
O neurocientista francês Michel Desmurget apercebeu-se do «papel particularmente nocivo» da tecnologia quando a filha de dez anos lhe pediu um telemóvel. Nascido em 1965, esteve oito anos nos Estados Unidos em instituições como MIT e é diretor de pesquisa no Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale (Instituto Nacional da Saúde e da Investigação Médica). Tem passado os últimos anos a avaliar o impacto da tecnologia na saúde das pessoas, e concluiu que os ecrãs constituem uma ameaça silenciosa. O seu primeiro livro intitulava-se, reveladoramente, TV Lobotomie – la vérité scientifique sur les effets de la télévision, uma investigação que depois alargou a outros aparelhos tecnológicos e que resultou n’A Fábrica de Cretinos Digitais. Os estudos levam-no a concluir que o uso excessivo de telemóveis e tablets, que não exigem de nós muito mais do que mexer um dedo, está a afetar as nossas capacidades intelectuais. «Dê às crianças um tablet para a escola e as notas delas vão piorar», diz-nos a partir de França.
Como podemos contrariar esta tendência? No seu mais recente livro Desmurget aponta um caminho. O título diz tudo: Ponham-nos a Ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais (ed. Contraponto). «Ler influencia positivamente todas as dimensões fundamentais da nossa humanidade», defende. Em entrevista, também fala sem papas na língua sobre o ChatGPT e as suas sinistras consequências – «tornarmo-nos uma espécie de gado descerebrado». Desmurget respondeu às perguntas do Nascer do SOL por email.
Quando se apercebeu de que os smartphones constituíam uma ameaça, especialmente para as crianças?
Está provado que os ecrãs recreativos, de uma forma geral (televisões, filmes, séries, vídeos, videojogos, redes sociais, etc.), são uma ameaça ao desenvolvimento do cérebro. Os smartphones representam agora uma percentagem bestial do tempo de ecrã das crianças e adolescentes. Os estudos mais precisos mostram que mais de 90% dos adolescentes têm telemóvel próprio e usam-no entre quatro e seis horas por dia. É exorbitante! Basta apanhar o autocarro ou o metro para vermos os miúdos colados ao telemóvel. Tornou-se um verdadeiro problema de saúde pública. Quando, há quase dez anos, a minha filha, que hoje tem 19, me pediu um telemóvel porque todas as amigas dela tinham, eu disse que não e expliquei-lhe porquê. Ela percebeu e correu tudo muito bem. Já nessa altura eu achava que era uma loucura dar um telemóvel a uma criança de dez anos. Se tivesse de identificar o momento em que me tornei consciente do papel particularmente nocivo destes aparelhos móveis, diria que foi por volta dessa altura, embora já soubesse do impacto negativo dos ecrãs recreativos muito antes.
Como neurocientista, consegue explicar o que o uso excessivo dos ecrãs faz ao cérebro humano?
Estes instrumentos têm uma capacidade extraordinária de captar a atenção da criança estimulando o sistema de recompensas. Baseiam-se em vulnerabilidades íntimas da nossa organização cerebral. Por exemplo, procurar informação ou ter interações sociais positivas ativa o nosso sistema de recompensas. Este é o princípio do FOMO [‘fear of missing out’ ou ‘medo de perder algo’], que nos leva a verificar os nossos telefones dezenas de vezes por dia, apenas para ‘ver se há alguma coisa’. Essa é também a razão por trás dos likes. Cada vez que consultamos o aparelho ou recebemos um like, o nosso cérebro ‘recompensa-nos’. Acontece que o cérebro amadurece relativamente tarde e as capacidades cognitivas que poderiam permitir às crianças e adolescentes regular o seu consumo ainda não estão completamente desenvolvidas quando recebem um smartphone. Os seus cérebros ainda não estão preparados para lidar com um smartphone. É parecido com o que acontece com o álcool – o impacto é muito mais prejudicial e irreversível num cérebro que se está a desenvolver do que num órgão já plenamente formado. Estudos recentes mostram que usar estes instrumentos pode levar a uma desregulação patológica do sistema de recompensas, reforçando o uso e aumentando potencialmente o risco de outras adições. Além disso, há toda uma profusão de efeitos indiretos relacionados com o facto de o tempo gasto no Tiktok, na Netflix e noutras plataformas ser necessariamente roubado a outras atividades mais construtivas, como dormir, interações familiares, a leitura, o desporto, os trabalhos escolares e por aí fora.
Que sintomas exibe uma criança que passa demasiado tempo a olhar para ecrãs? Quais são os sinais de alarme?
Esse é precisamente o problema – os sintomas muitas vezes são discretos e difíceis de detetar. Quando um adolescente parece um zombie, está manifestamente ausente das ocasiões sociais ou vê as suas notas afundarem-se, é fácil notar. Porém, muitos efeitos sucedem silenciosamente. Por exemplo, ponha um smartphone nas mãos de um adolescente e ao fim de três meses vai verificar um défice acentuado em testes de concentração. Mas isto pode não ser imediatamente evidente na vida do dia-a-dia. Do mesmo modo, deixe um adolescente jogar Super Mario Kart uma hora depois do estudo e três horas antes de ir para a cama e vai registar um défice de retenção à volta dos 30%. Outro estudo que envolveu estudantes universitários revelou que cada hora de uso do smartphone fora da escola resulta numa queda de 4% na hierarquia da turma. Por outras palavras, se um estudante estiver em 50.º numa turma de cem, com uma hora de uso diário do smartphone passa para 54.º. Com uma média de uso de 4 horas, passaria para 66.º. Outro exemplo: dê às crianças um tablet para a escola e as notas delas vão piorar, como foi demonstrado por um estudo recente na Catalunha – entre 4 e 6%, dependendo das disciplinas. Não é imenso, mas é assinalável (aproximadamente o que separa Portugal dos países da OCDE com melhores resultados nos índices do PIS).
Enquanto pai, como posso convencer o meu filho de que o tempo que gasta a olhar para o telemóvel é isso mesmo, tempo perdido?
Explicar é fundamental, mas não chega. É preciso estabelecer regras. Na realidade, o que é preciso é explicar essas regras ou, melhor ainda, estabelecê-las em concordância com a criança ou adolescente. As explicações são bastante simples. Quanto mais o tempo de ecrã aumenta, mais prejudica o desempenho académico, o tempo dedicado à leitura ou aos trabalhos para casa, a concentração, o sono, a saúde física (devido ao comportamento sedentário), o risco de depressão e ansiedade (especialmente relacionados com hábitos de sono e sedentários) e o risco de exposição a conteúdos inadequados. Este último é muitas vezes subestimado. Contudo, vários estudos mostram que a exposição a conteúdos sexuais, violentos ou relacionados com o álcool e o tabaco durante a adolescência aumentam significativamente os comportamentos de risco (por exemplo, entre os 25% de adolescentes mais expostos e os 25% menos expostos a conteúdos tabágicos, o risco de começar a fumar multiplica-se por dois ou por quatro, consoante o estudo).
O seu livro faz a apologia da leitura. Em que medida ler ajuda a contrabalançar os efeitos nefastos da tecnologia?
Ler, obviamente, não é uma solução milagrosa. Mas é uma solução eficiente e ‘descomplicada’. Ler influencia positivamente todas as dimensões fundamentais da nossa humanidade. Os benefícios comprovados incluem o melhoramento no nosso funcionamento intelectual no que respeita ao QI, linguagem, concentração, cultura geral, criatividade e capacidades de expressão e de síntese (tanto escritas como orais). Ler, especialmente romances, também melhora a nossa inteligência emocional. Quando vejo as personagens num filme, não tenho acesso à complexidade dos seus pensamentos. Mas quando leio um romance, entro literalmente na mente das personagens e consigo perceber as motivações por trás das suas ações e pensamentos. Melhor ainda, consigo viver essas emoções. Isto explica por que os leitores de romances tendem a ser pessoas mais tolerantes, com níveis mais altos de empatia e maior capacidade de compreenderem os outros e de se compreenderem a si próprios (aquilo a que os investigadores chamam teoria da mente). Em última análise, todas estas influências têm um forte impacto positivo no sucesso académico e profissional. E vale a pena notar que estes benefícios não exigem um esforço hercúleo – basta 20 a 30 minutos de leitura diária.
Referiu que recusou oferecer um telemóvel à sua filha de dez anos. A pressão hoje exercida sobre os pais para deixarem os filhos terem telemóvel é enorme. Até as escolas começam a exigir que os alunos saibam usar tablets, computadores ou smartphones desde tenra idade. Considera isto um erro?
É um perfeito disparate! Obviamente, ninguém é tolo ao ponto de defender que se rejeite completamente o digital ou se embarque numa cruzada tecnofóbica. Em vários campos, a revolução digital revelou-se altamente benéfica (na indústria, na investigação, na medicina, no comércio, etc.). Temos de ensinar às novas gerações estes usos positivos. Devem receber formação sólida em informática, aprender algoritmos e a saber usar software fundamental (como aplicações do Office). Isto é verdadeiramente
crucial porque, contrariamente ao mito habitual dos ‘nativos digitais’, as nossas crianças têm dificuldade em usar a tecnologia digital nos seus aspetos positivos. Temos poucos motivos para celebrar quando uma criança apenas consegue usar aplicações básicas num tablet ou num smartphone. Um executivo da Google que decidiu pôr o seu filho numa escola primária sem computadores explicou num artigo do New York Times que usar estas ferramentas era «superfácil». «É como aprender a usar pasta de dentes. Na Google e nestas empresas tentamos fazer tecnologia tão desmioladamente simples de usar quanto possível». Em linha com esta afirmação, um relatório da União Europeia sublinha que as atuais competências digitais da nova geração são tão baixas que comprometem a adoção de tecnologias educacionais nas escolas. Além disso, vários estudos académicos mostram que para lá do domínio digital básico, as nossas crianças e adolescentes têm dificuldades, mesmo com competências muito elementares de segurança, privacidade de dados, codificação, e uso de softwares como o Word ou o Excel). Por isso, se a pergunta for se devemos ensinar estas competências informáticas às novas gerações, a resposta é claramente sim. Mas se achamos que para lá chegar temos de dar todo o tipo de engenhocas tecnológicas às crianças desde muito pequenas, aí a resposta é claramente não. Não existe qualquer relação entre o uso destes aparelhos e o desenvolvimento de competências informáticas fundamentais.
Hoje já não precisamos de saber fazer contas porque temos calculadoras. Não precisamos de memorizar nada porque basta perguntar ao Google. Não estaremos a transferir demasiadas tarefas para estes dispositivos? Acha que a longo prazo este processo acabará por fazer com que os seres humanos percam capacidades?
Isso são ideias pedagógicas que mereciam, desculpe que lhe diga, o prémio Nobel da estupidez! Para perceber os números, temos de saber manipular os dígitos. Somar, subtrair, multiplicar ou dividir são atividades sem as quais certas fundações essenciais do pensamento matemático não podem ser estabelecidas. Não tem problema nenhum usar uma calculadora depois de adquiridas estas competências. Mas se a calculadora substitui a construção desta aprendizagem é um desastre. De modo idêntico, essa ideia de ‘vê no Google’ é uma história impossível. O conhecimento não se faz de informação isolada, mas de informação encadeada. Se não soubermos nada sobre a Guerra Colonial ou sobre a ditadura de Salazar não vamos perceber a Revolução dos Cravos. Se não tivermos uma formação sólida em matemática, de nada nos serve ir ao Google ver o que são as integrais de Riemann. Pior ainda, sem conhecimento prévio, não conseguimos sequer ter noção daquilo que não percebemos. Considere esta frase: ‘Marie tem sido cautelosa com Paul desde que ele lhe disse que gostava de se isolar nas margens do vasto Lago Huron, a ver as águas, na maré alta, embaterem nas estacas da sua cabana’. Ou sabemos que não há marés nos grandes lagos canadianos e percebemos a frase, ou não sabemos e perdemos a essência do texto. Além disso, o conhecimento não é útil apenas para a compreensão, mas também para pensar, antecipar, imaginar e criar! Dizem-nos que vamos deixar de precisar de pensar porque o ChatGPT poderá em breve (talvez) fazê-lo por nós? Tornarmo-nos uma espécie de gado descerebrado incapaz de perceber (vê no Google) ou pensar (ChatGPT) sobre o mundo – que maravilhoso projeto civilizacional.
O que diria a um ministro da Educação ou ao diretor de uma escola que estivesse a equacionar trocar os livros escolares de papel por manuais digitais?
Diria o seguinte: ‘Por favor olhe para os dados científicos e deixe de tomar decisões só para parecer moderno e para agradar a grupos de pressão facciosos’. Os factos são claros: os livros de papel são mais amigos do ambiente, não custam mais se forem reutilizados, especialmente se tivermos em conta o custo dos tablets e das reparações (que levam algumas instituições a terem de contratar pessoal). Além disso, os livros de papel proporcionam uma melhor compreensão do que os livros digitais. Ouço dizer muitas vezes que os livros digitais são melhores porque aliviam a carga nas mochilas das crianças. A solução é simples: forneçam dois conjuntos de livros – um fica na escola, o outro fica em casa.
Para terminar: acha que os smartphones deviam ser banidos das escolas?
Claro que sim! Os smartphones são uma gigantesca distração para as crianças e adolescentes. Não há qualquer razão para estarem a uso durante o tempo de aulas. Percebo que alguns professores os queiram pontualmente para fins pedagógicos direcionados. Mas e os adolescentes que não têm smartphones? Mais: qual é o verdadeiro valor acrescentado dessas utilizações? O risco de impor os smartphones às crianças e adolescentes está comprovado. Inversamente, os benefícios pedagógicos destas ferramentas estão longe de ser evidentes, e muitos estudos já mostraram os efeitos negativos. Se fizermos uma análise custo-benefício, torna-se muito claro que o uso destes gadgets devia ser proibido nas escolas.