O municipalismo é uma conquista da democracia. Muito do que resta do Estado social, que descrevi no meu último artigo, é assegurado pelas autarquias.
Não me refiro a Lisboa ou ao Porto, onde a presença das instituições do Estado e os orçamentos municipais conseguem suprir muitas das carências da Administração Central. Refiro-me, sim, a autarquias em territórios de baixa densidade, que «fazem das tripas coração» para proporcionar qualidade de vida às suas populações. É o caso dos municípios do Fundão, São João da Pesqueira ou Arraiolos, que, com parcos recursos e territórios heterogéneos, produzem pequenos milagres à força de muito esforço e imaginação.
Com a última descentralização, os municípios ganharam novas tarefas. Mas as suas competências mantiveram-se escassas, particularmente na ação social, área em que as autarquias têm falta de massa crítica e a Administração Central determina todos os critérios relevantes. Acresce que os recursos que foram alocados aos municípios são insuficientes e estes não têm capacidade reivindicativa, porque a sua associação foi domesticada pela lógica partidária.
Quem decide os parâmetros e as prioridades das políticas sociais são políticos e altos dirigentes que não conhecem o território, nem reconhecem as suas assimetrias. Políticos e altos dirigentes que, amiúde, revelam pouca sensibilidade ou até paciência para os autarcas do Interior.
Esta realidade complexa escapa aos especialistas bem-intencionados, como Maria João Bárrios, que escreveu no Público um artigo algo condescendente, sob o título Autarquias que comprometem desenvolvimento social. Num longo arrazoado, Bárrios descreve as competências que as autarquias poderiam desempenhar e conclui que, «em muitos municípios, elegem-se autarcas sem experiência prévia em atividade política, gestão pública e traquejo deliberativo», que «foram assessores, tornaram-se vereadores e alguns chegaram a presidentes de câmara. Fazem dos mandatos sucessivos uma profissão, que não é!».
Não sei se Bárrios pretende que os autarcas eleitos sejam substituídos por regedores de alto rendimento. De resto, quando tipifica os autarcas, poderia estar a descrever ministros ou diretores-gerais, que têm as mesmas carreiras, idênticas limitações e ambições, e por culpa de quem as políticas públicas pouco ou nada arriscam.
Bárrios não sabe que a (escassa) composição do gabinete de um presidente de câmara é estabelecida por lei? Não sabe que a vereação é limitada, que a oposição se senta à mesa do Executivo e que em muitos municípios não há maioria na Assembleia Municipal? E será que também desconhece que os dirigentes municipais – os yes, minister, que muito decidem – são selecionados por concurso público, o que não garante o exercício do poder hierárquico pelos órgãos políticos eleitos? Tudo isso está plasmado na infame lei 75/2013, que humilha o poder local e quase define, de forma paternal, a roupa interior que os autarcas têm de envergar.
É fácil atirar pedras aos autarcas, porque estão na primeira linha. Conheci muitos, nestes 11 anos que levo de presidência, e nunca me ouvirão desmerecê-los. Também conheci muitos especialistas, ouvi inúmeros diagnósticos e tive de conviver com vários governos. Não é possível generalizar.
Gostaria de sugerir a Bárrios, e a outros especialistas que vou lendo, que fizessem um esforço para conhecer a realidade. Quero apostar que, se fizerem uma avaliação rigorosa, concluirão que para obter resultados equivalentes, nomeadamente em questões sociais, os municípios desperdiçam menos recursos do que a Administração Central ou a Santa Casa da Misericórdia, que só serve Lisboa. Muitos autarcas só não fazem melhor porque o Estado é voraz e nada mais quer do que ter, nos eleitos locais, tarefeiros baratos.