O Serviço Nacional de Saúde está na boca do lobo e não se fala de outra coisa. Urgências fechadas, falta de médicos… Mas a ‘guerra’ com o privado vem de trás e está a complicar-se pois são cada vez mais os doentes que são transferidos ‘à força’ do privado para o público por terem esgotado o plafond do seguro.
É daqueles temas de que todos falam, mas baixinho, e, apesar do assunto ter anos e se ter vindo a agravar nos últimos tempos, continua a ser proibido de se dizer em voz alta. A comunidade médica, e não só, desespera, mas nenhum Governo parece ter a força suficiente para resolver o problema.
Em Portugal, são cada vez mais as pessoas que têm seguros de saúde – fala-se em quase quatro milhões – mas isso não significa acesso ilimitado ao serviço de saúde privado. E é aqui que a história se começa a complicar. Seja por terem esgotado o plafond do seu seguro ou por o seu quadro clínico se ter deteriorado, muitos doentes são transferidos dos hospitais privados para os públicos. O Nascer do SOL sabe que, pelo menos, 15% dos novos doentes oncológicos que entram todos os anos no Instituto Oncológico Português de Lisboa (IPO) ‘saíram’ do serviço privado, ou por terem esgotado o seu plafond do seguro, ou porque o seu quadro clínico se agravou consideravelmente e só o IPO ou outros hospitais públicos conseguem responder às suas necessidades. Isto é, necessitam de tratamentos que exigem um «elevado índice tecnológico e prolongado», nas palavras de um médico do IPO.
Um cartão que diz muito
Se pensarmos que todos os anos entram, pelo menos, 15 mil novos doentes no IPO de Lisboa, facilmente se percebe que quase dois mil têm origem no privado, embora algumas fontes médicas ouvidas pelo nosso jornal afirmem que os números são bem mais altos. Mas como o Ministério da Saúde não responde, é difícil saber a dimensão exata do fenómeno. «As pessoas acham que por terem um seguro de saúde podem ser tratados no privado, mas não olham ao limite do seu cartão. Quando alguém entra num privado, logo na receção, tem-se consciência de quanto essa pessoa pode gastar. E aqui é muito discutível aceitarem pessoas que sabem que não vão conseguir terminar o tratamento, por falta de dinheiro, mas não lhes dizem isso», explica a mesma fonte.
O problema é muito mais complexo pois alguns doentes do Serviço Nacional de Saúde que aguardam pela sua chamada para começarem os tratamentos do IPO acabam por ser ‘ultrapassados’ por doentes do privado que iniciaram os tratamentos ou que foram operados e ficaram sem dinheiro para pagar a estadia no hospital privado. E aqui não há muito a fazer, segundo várias fontes contactadas, pois não se pode interromper um tratamento oncológico sob pena de a pessoa perder as esperanças de vida. Daí que passem à frente daqueles que ainda não iniciaram o seu processo de recuperação. «Isso é normal e humano, não tem nada de proteção a ninguém, mas se os privados avisassem os doentes oncológicos dos custos inerentes ao tratamento, e não só à cirurgia em particular, talvez muitos não começassem os tratamentos no privado».
Contentes e felizes por exames desnecessários
Por outro lado, «o que também é irritante nisto», diz outro médico, «é que os doentes ficam todos contentes por lhes fazerem ecografias, TAC, ressonâncias magnéticas e análises, sem perceberem que estão a ficar sem dinheiro e que muitos desses exames são totalmente desnecessários», acrescenta o mesmo profissional.
Como o assunto mete seguradoras ao barulho, o Nascer do SOL ouviu a Associação Portuguesa de Seguradores (APS), que faz a sua leitura da polémica: «As seguradoras estão obrigadas a prestar um conjunto de informação sobre as condições do contrato, incluindo informação expressa quanto à eventual interrupção ou descontinuidade da prestação de cuidados de saúde caso sejam alcançados os limites de capital seguro e cabe aos estabelecimentos de saúde, no momento prévio ao da prestação de cuidados de saúde, informar as pessoas sobre os custos totais da intervenção propostas e quais os que serão a suportar ao abrigo de seguros». A APS acrescenta ainda: «Importa realçar também que, no caso das pessoas que apenas têm planos de saúde (e não seguros de saúde), o utente é o único responsável pelo pagamento dos cuidados que lhe são prestados, não havendo qualquer comparticipação associada por parte de uma entidade terceira, residindo aí uma enorme diferença entre planos e seguros de saúde. No contexto concreto da doença oncológica, a Associação realizou um estudo técnico, em 2023, sobre ‘a doença oncológica nas carteiras de seguros’. Fazemos referência, em particular, à evolução dos custos pagos pelas seguradoras com a doença oncológica». Os dados fornecidos dizem que a APS gastou em 2022 mais de 76 milhões de euros, sendo que 42,2 milhões em seguros de grupo e quase 34 milhões em seguros individuais. Um aumento de 10 milhões face ao ano anterior.
Ordem dos Médicos ouviu dizer
E o que diz a Ordem dos Médicos sobre a possibilidade dos seus filiados andarem a gastar dinheiro desnecessariamente de doentes ou de não os esclarecerem devidamente sobre os custos associados aos tratamentos oncológicos e a incapacidade de alguns privados levarem o tratamento até ao fim? «Ouvimos dizer que acontece doentes do privado ficarem sem plafond e que são transferidos para o público. Há aqui um aspeto que é importante, que é quando o privado inicia determinado tipo de tratamento ou de intervenção médica, tem que ter a capacidade de resolver esse problema de saúde e todas as complicações que podem advir desse problema de saúde. Os hospitais privados ou do setor social têm que estar apetrechados de todas as condições técnicas e humanas para poder fazer isso. Também não vejo com bons olhos um hospital privado tentar uma cirurgia, seja àquilo que for, e depois afinal aquilo é mais complicado e vai para o público».
Carlos Cortes, quando questionado sobre o fim do plafond, alerta que os privados não são como o público. «Compreendo que o setor privado não é como os hospitais públicos, que podem ter financeiramente um saldo negativo todos os anos, e continuam a funcionar. O hospital privado não funciona assim. E também compreendo que haja aqui determinado tipo de restrições».
Mas o bastonário da Ordem dos Médicos não deixa de fazer um alerta: «Os privados ou o social só podem envolver-se em determinadas patologias se souberem que têm capacidade para depois as resolverem se houver complicações, caso contrário não as devem fazer» (ver págs. 10-12) .
São muitas as histórias que colocam em confronto os serviços prestados pelo público e pelo privado. Há um caso muito emblemático de uma médica que morreu há quase cinco meses e que deixou os seus amigos médicos indignados. Sofrendo de uma patologia grave, a médica foi operada, mas um erro médico fez com que voltasse a ser operada mais quatro vezes. «O médico da primeira operação reconheceu o erro, mas as contas continuaram a somar. Ao fim da quinta cirurgia ficou sem plafond e foi enviada para o Beatriz Ângelo, onde acabou por morrer», diz ao Nascer do SOL um conhecido médico. Já outra colega lembra que as pessoas não leem o que está escrito nos contratos de seguro assinados e que, por isso, estas histórias sucedem-se. «Mesmo que o médico que a operou o tivesse feito pro bono, o hospital não trata de caridade. A sala e toda a equipa envolvida na operação tem de ser paga. Se eu concordo com isto? Claro que não, mas são as regras do mercado. Se o erro foi do médico que a operou porque não assumiu o hospital a culpa?».
Acidentes quase fatais
O conflito, como se disse, não é novo, mas tem vindo a agudizar-se. Vejamos o que se passa com os acidentes de viação ou mesmo acidentes domésticos. Mesmo que as pessoas tenham seguros de saúde, são levadas, regra geral, para os hospitais públicos e depois de operadas deviam seguir para o privado para continuarem a recuperação. «Só vão para o privado quando as seguradoras assumem o pagamento da continuidade dos tratamentos, situação que é muito demorada, na maioria dos casos», como explica um médico.
As transferências de doentes do privado para o público são diversas. «Sempre que há situações muito complicadas os doentes são transferidos para o público, pois estes têm mais condições e, além disso, ninguém quer assumir a continuidade do tratamento em virtude de se tratar de doentes muito complexos», acrescenta a mesma fonte.
É comum os doentes recorrerem ao privado quando não têm resposta imediato no público. Se alguém precisa de ser operado a uma maleita e no público só há resposta passado largos meses, a pessoa tenta o privado. E aqui também contam ao Nascer do SOL várias histórias curiosas, que fazem parte de um novelo dos problemas que afetam o Serviço Nacional de Saúde. «Há uns meses, uma pessoa amiga foi operada no privado, pois no público o tempo de espera era enorme. Acontece que com todos os exames que teve de fazer – ecografia, TAC, ressonância magnética, análises, etc. – e, como o plafond não era muito generoso, mal acabou de ser operada no privado foi enviada para o público, onde acabou por ser atendida pelo mesmo médico que a tinha operado. Isto é tramado. Se o público tivesse condições e pagasse convenientemente aos seus profissionais, acabaria por poupar muito dinheiro, evitando muitas chatices», considera outro médico do Santa Maria.
Quando o luxo compensa
Mas se há quem tenha de ser despejado dos hospitais privados para os públicos, há quem faça o caminho inverso. Não raras vezes, pessoas conhecidas que dão entrada nos hospitais públicos são operadas, mas depois optam por fazer a recuperação no privado, «pois não querem conviver no meio da molhada», como nos diz um médico de Lisboa. «Como têm um bom seguro de saúde, optam por fazer a operação no público – onde sabem que existe uma boa equipa – isto em determinadas especialidades, mas depois vão para o privado recuperar no quarto de hotel. Como se vê, há casos para todos os gostos».
O caso duplo de Filipa
O caso de Filipa é ligeiramente diferente, mas os pontos em comum são iguais: perante o valor do plafond do seguro do trabalho, teve de fazer acompanhamento e tratamento tanto no público como no privado. Foi a médica que a acompanhou em primeira instância que lhe fez perguntas sobre os valores das diversas coberturas e a aconselhou sobre os passos seguintes.
Em novembro do ano passado, a jovem de 32 anos notou que algo não estava bem no seu corpo. Estava a tomar banho e sentiu um nódulo no peito. Chamou o namorado e este concordou: alguma coisa estava errada. «O nódulo não era maleável. Marquei logo uma consulta para saber aquilo que se passava», explica Filipa ao Nascer do SOL, sendo que fez uma ecografia e uma mamografia poucos dias depois. Primeiro ainda lhe foi dito que poderia ser um quisto, mas Filipa teve «um pressentimento» desde o dia em que lavou o peito e entendeu que precisava de ajuda. Quando uma médica tratou da biópsia, explicou-lhe que já sabiam que se tratava de um nódulo porque o formato não era «normal, digamos assim, era totalmente diferente, quase como se fosse uma estrela». A taxa de proliferação era de 95% e, portanto, Filipa teve de iniciar a quimioterapia e também a imunoterapia. Mas a médica que estava a acompanhá-la encaminhou-a de imediato para uma colega oncologista do Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca (na Amadora). «Ficou logo decidido que faria os tratamentos no público e o resto no privado», realça, exemplificando que a cirurgia a que foi submetida foi realizada no setor privado e a fisioterapia que tem de fazer – 75 sessões – também não ocorrerá no SNS.
«Por exemplo, o plafond do ambulatório era só de 1750 euros. Ou seja, não é nada. Eu fiz um exame, que é o PET Scan, que é indicado para investigar alguns tipos de cancro, e o seguro cobriu apenas 380 euros. Paguei 1120 euros», conta, salientando que «as seguradoras querem que nunca usemos os seguros». «É como aquilo que acontece com os seguros automóveis: se tivermos vários acidentes com o mesmo veículo, enviam-nos uma carta quase a dizer que não interessamos porque damos despesa», lamenta. «E, infelizmente, há cada vez mais doentes oncológicos que precisam de ajuda. Por exemplo, a minha médica do Amadora Sintra tem um grupo do WhatsApp com doentes que têm cancro da mama. Durante algum tempo não entrou mais nenhuma mulher mas, no espaço de semanas, entraram mais algumas».
Mas o caso de Filipa não é único e já há vários anos que este problema é noticiado. Em agosto de 2022, o médico neurologista Bruno Maia concedeu uma entrevista ao Nascer do SOL e deixou claro: «Todos os meses recebemos transferências de doentes dos hospitais privados por ter acabado o plafond [do seguro]. É preciso regulamentar isto. É preciso criar regras para que os doentes atendidos nos hospitais privados terminem os tratamentos nos hospitais privados. Quando temos pessoas a meio de tratamentos e são forçadas a ser transferidas por falta de dinheiro, algo não está bem».
Já em 2016, o Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa pedira à Entidade Reguladora da Saúde (ERS) que estabelecesse regras para lidar com doentes com cancro que, após esgotarem os recursos financeiros ou o plafond do seguro em hospitais privados, eram transferidos para o SNS. Esta situação, que se tornava cada vez mais comum devido ao aumento de tratamentos oncológicos em hospitais privados, criava desafios para os hospitais públicos, como atrasos no início de tratamentos e complicações éticas para os médicos ao darem continuidade a tratamentos já iniciados. E já em 2009 a mesma situação era descrita: naquele ano, no Hospital de Santa Maria, o segundo maior do país, um quinto dos então novos doentes com cancro apareciam devido a transferência do setor privado.
Milhões com seguros de saúde
Segundo dados da Associação Portuguesa de Seguradores (APS), avançados ao Observador no final do ano passado, quase 3,6 milhões de portugueses tinham seguro de saúde no primeiro semestre de 2023. Ou seja, verificava-se um crescimento de 8,5% do setor em relação ao mesmo período de 2022. Já de acordo com o ECO, no ano passado, o número de segurados de saúde em Portugal ultrapassou os quatro milhões. Durante esse período, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) registou 4.824 reclamações contra seguradoras de saúde, representando 1,18 queixas por mil contratos, uma redução em comparação aos 1,29 do ano anterior. A principal causa das reclamações foi o desacordo em relação a sinistros.
A seguradora UNA foi a que menos reclamações recebeu em 2023, enquanto a Mgen foi a que mais gerou queixas. A ASF deu respostas favoráveis aos queixosos em 40% dos casos. O relatório da ASF, que avaliou 15 seguradoras ou grupos, indicou que a UNA teve apenas 14 reclamações, a Generali Tranquilidade foi a segunda melhor e o grupo Fidelidade, com 810 queixas, ficou na 5.ª posição. O grupo Ageas, segundo maior operador, ficou abaixo da média com 2,35 queixas por mil segurados. No entanto, a Mgen teve o pior desempenho, com mais de 1% dos seus clientes a reclamarem. A ASF destacou que algumas seguradoras não tiveram os seus rácios divulgados devido ao baixo número de queixas ou por serem outliers no mercado
Com Maria Moreira Rato