‘Quando se avalia um médico com números como é que há humanismo?

Carlos Cortes acredita que o SNS pode ser salvo se forem dadas melhores condições aos médicos e deposita grandes esperanças na inteligência artificial. Mas é crítico do Ministério da Saúde, que entende que só quer saber de números.

Que propostas concretas tem a Ordem dos Médicos (OM) para assegurar o adequado funcionamento das urgências, e a garantia da segurança dos cuidados de saúde?                             
O SNS tem vários problemas, um deles é a falta de recursos humanos, nomeadamente médicos. Faltam médicos nalgumas especialidades de forma muito mais pronunciada, nalgumas áreas do país de forma muito marcada, e que compromete, não tenhamos dúvidas, a qualidade dos cuidados de saúde e, muitas vezes, até a segurança dos próprios utentes e dos profissionais. Mas não é só esse o problema.

Ia buscar mais médicos, é isso.

Sim. Depois há um problema da própria organização do sistema. Não podemos esquecer que o SNS foi criado há 45 anos, em 1979, para responder a uma determinada conjuntura. Entretanto, a sociedade evoluiu muito, a ciência, a tecnologia, a medicina, o perfil demográfico do país, população muito mais envelhecida, e o SNS não evoluiu, manteve-se como funcionava há 45 anos, sobretudo, nos hospitais e nos serviços de urgência. Há aqui um problema estrutural, de organização do SNS. Cada vez menos os médicos aderem ao SNS, preferem ir para o setor privado, social, muitos deles vão para a emigração e não se sentem atraídos por um setor que tem dificuldade em apresentar boas condições de trabalho. O SNS tem muito pouca flexibilidade, até laboral, não é uma matéria da Ordem, mas não deixo de ser médico do SNS. O SNS tem uma estrutura muito pesada, avessa às mudanças, e hoje não é competitivo com o setor privado, que oferece um conjunto de condições aos médicos, e não estou só a falar das condições remuneratórias, mas falo do horário de trabalho, que é mais flexível, que permite compatibilizar melhor a vida pessoal com a vida profissional, o desenvolvimento de projetos assistenciais, projetos formativos, de investigação, e isso é algo muito importante e que atrai os médicos. O SNS tem de se tornar mais atrativo, mais competitivo para poder ir buscar os médicos que são necessários. E, às vezes, nem sequer é necessário investir muito do ponto de vista financeiro, basta ter capacidade imaginativa para ter algumas soluções, e vou dar o exemplo de uma que apresentámos à ministra da Saúde, e já a tínhamos apresentado ao anterior ministro. Nós estamos no mês de agosto e muitos médicos ainda não foram contratados para os hospitais e para os centros de saúde. Este ano as coisas correram muito mal, o Governo iniciou funções muito tarde, do ponto de vista da cronologia do internato médico, da especialização dos médicos, e aqueles que acabaram a sua especialidade em abril, muitos deles ainda não estão contratados pelas Unidades Locais de saúde (ULS) que precisam deles. Aquilo que pedimos à ministra é uma medida muito simples: disponibilize aos médicos as vagas que vão abrir antes mesmo antes deles acabarem a sua especialidade, até para poderem começar a desenhar o seu projeto de vida, profissional, sabendo onde vai abrir uma vaga. Por exemplo, um médico, vamos supor, que está a terminar a sua especialidade no hospital de Castelo Branco, não sabendo se iria abrir ou não uma vaga no hospital de Castelo Branco, é muito provável que tenha aceite o convite de um hospital privado. Porventura, esse médico que teve a fazer a sua especialidade durante sete anos em Castelo Branco se calhar até queria ficar por lá. Se as vagas saírem mais cedo, em fevereiro ou março, os médicos aí já podem começar a desenhar o seu futuro.

Está a falar há mais de seis minutos e ainda não conseguiu responder à pergunta: que propostas concretas tem a Ordem para assegurar o adequado funcionamento das urgências?

É preciso dar condições aos médicos para aderirem ao SNS. Reformular a rede das urgências é absolutamente fundamental. Reestruturar a forma como hoje entendemos a urgência. Há muita gente que vai às urgências e que nem lá devia ter entrado. Há centros de atendimento que estão a ser criados por todo o país. Pode ser uma solução, se eles forem bem disseminados, porque muitos dos doentes que vão às urgências e que não necessitam, muitas vezes ou não têm médico de família, e aí o reforço dos cuidados de saúde primários é absolutamente essencial, ou muitas vezes, enfim, o seu quadro clínico também não está adequado a uma consulta aguda. Portanto, a Ordem vê estes centros de atendimento complementares como positivos, para retirar mais de 3 milhões de doentes das urgências.

Hoje, dia 19, saiu um relatório do IGAS, sobre o problema das urgências em 2022, que conclui que os médicos foram quase todos de férias no mesmo mês, que alguns não estavam no seu serviço, e por aí fora. Olhando para o relatório, pergunto-lhe se não existe um certo corporativismo na forma como se olha para os problemas da saúde.

Penso que não, mas a reforma das urgências é absolutamente essencial. Quanto ao relatório, de que não tive conhecimento, não são os próprios médicos que fazem as escalas de férias. O que se passa é que há conselhos de administração que têm que desempenhar o seu papel. Se todos os médicos tiram férias na mesma altura, isso tem que ser, obviamente, corrigido. Mas não é isso que está a prejudicar o SNS. Objetivamente, o SNS tem falta de médicos. Na ginecologia obstetrícia, nas maternidades, há perto de dois mil médicos especialistas. Só 760 é que estão no SNS. Não há aqui um problema de férias, há aqui um problema verdadeiramente de falta de médicos no SNS.

Há colegas seus que dizem que há médicos a mais em várias especialidades. Se nós fôssemos, neste momento, aos hospitais de Lisboa do SNS acha que os médicos que lá deviam estar se encontram no seu local de trabalho?

Não deteto esse problema, mas havendo suspeita de ele poder acontecer, as autoridades têm que atuar. Obviamente que quem tem um horário de trabalho no hospital tem que estar a desempenhar a sua atividade nesse hospital e não pode estar fora desse hospital. Isso tem implicações do ponto de vista disciplinar do hospital, mas até do ponto de vista da OM. A Ordem tem um conjunto de órgãos e de mecanismos, nomeadamente na área deontológica, para poder também analisar essas situações.

Nunca ouviu falar do problema?

Ainda esta semana se falou nisso… Se isso acontece, simplesmente os próprios conselhos de administração têm que reportar à OM, para a Ordem fazer o seu trabalho.

Então concorda com a crítica que a ministra da Saúde fez aos conselhos de administração dos hospitais de que são fracos.

Há um aspeto, nestes últimos meses, que me tem desagrado muito. Que é o passar as responsabilidades para os outros. Todos os dias oiço um dirigente político, do Governo ou da oposição, a dizer que a culpa do SNS estar assim é do partido A ou do partido B. É da corporação C ou D. É do grupo E ou F. Temos que virar essa página, o SNS não quer evoluir desta maneira, num conflito permanente. Parece que o SNS, mais do que um serviço público, serve para os partidos políticos estarem na arena eleitoral. É uma arma de arremesso eleitoral, e isso é um mau princípio. Tem de haver uma plataforma de consenso entre os partidos e os agentes da Saúde, nomeadamente os profissionais de saúde.

Por falar em questões deontológicas, por que acha que vários médicos contam, em off, que há uma pressão enorme para os médicos do privado faturarem… E que aqueles que não apresentam despesas com os doentes acabam por ser despedidos.

Como bastonário só posso ter em conta aquilo que me é apresentado do ponto de vista factual. Todas essas situações, a acontecerem, são altamente irregulares e a OM, obviamente, não pode permitir.

Mas nunca ouviu falar nisso?

Oiço, eu oiço falar de muita coisa. O que quero realmente é que quando essas situações aconteçam, elas sejam reportadas à OM. Como lhe disse nos casos anteriores que me falou, a OM tem uma missão que é de autorregulação da profissão. E aí a OM não falha. Tudo aquilo que os médicos fazem fora das suas obrigações deontológicas tem de ter consequências disciplinares. Julgo que no passado isso terá acontecido, e esses médicos foram sancionados.

Vários médicos têm defendido que a salvação do SNS passa por uma integração com os setores social e privado. Só uma conjugação deste três intervenientes pode salvar o SNS. A OM acha que poderá passar por aí a solução?

A minha visão é apenas técnica, de defesa dos doentes. E quando vejo muitas vezes o SNS incapaz de dar resposta, aquilo que quero é que os doentes sejam tratados. Se o SNS só por si não consegue tratar esses doentes – estou à vontade para falar nisso porque sou médico exclusivamente do SNS, nunca quis ir trabalhar para o setor privado – então tem que se socorrer do setor privado ou do setor social. Não vejo problema nenhum em relação a isso. Agora, a grande prioridade do país tem que ser reforçar este pilar de democracia que é o SNS. A solução é contratar mais médicos. Não se conseguem contratar de um dia para o outro, não se consegue fazer uma reforma profunda do SNS muito rapidamente, então temos que utilizar aquilo que temos à nossa disposição. E se Portugal tem à sua disposição uma resposta em cuidados de saúde fora do SNS, então, neste período, tem que a poder utilizar.

O nosso SNS era comparado com o sistema inglês. No passado, eram apontados como os casos exemplares, e neste momento diz-se que estão ultrapassados. Fala-se do exemplo holandês, que tem mais eficácia. Na Holanda, por exemplo, os enfermeiros têm um papel muito mais ativo do que em Portugal. O que acha desse sistema?

Efetivamente o sistema português e o do Reino Unido estão baseados no mesmo sistema, mas têm características muito diferentes. Desde logo, quem criou o SNS inglês foram os enfermeiros no pós-guerra, e nessa altura não havia propriamente médicos. Eles estavam na frente de batalha e muitos deles tinham morrido. E, portanto, foram as enfermeiras que na altura edificaram o NHS. É verdade aquilo que está a dizer, hoje, apesar da reforma dos anos 90 do NHS, ele está com enormes dificuldades. Até porque eles têm tido uma estratégia diferente daquilo que Portugal tem tido. Por exemplo, eles formam poucos médicos, e depois vão buscá-los a vários sítios, nomeadamente a Portugal – temos muitos médicos portugueses que estão neste momento no Reino Unido, muitos deles querem voltar para Portugal. O SNS português tem um perfil muito diferente, e a natureza das coisas é muitas vezes inultrapassável. O SNS foi criado por médicos, o ‘pai’ do SNS foi o dr. António Arnaut, que dizia, muitas vezes, que na verdade quem tinha criado o SNS tinham sido os médicos, os profissionais de saúde, que na altura o acompanharam nesta aventura democrática. Mas não obstante, as coisas são diferentes e eu reconheço essa diferença. Dantes, praticamente na saúde, a resposta era dada por médicos e enfermeiros. Hoje as coisas desenvolveram-se muito. Os enfermeiros hoje têm uma formação que não tinham há 45 anos. Há um conjunto de profissões na saúde que se desenvolveram substancialmente e, ao longo do tempo, criou-se aqui uma equipa de saúde, que valorizo muito. Cada um tem o seu papel, cada um tem as suas funções e nós podemos perfeitamente trabalhar em equipa e não há nenhum obstáculo, do ponto de vista da Ordem dos Médicos, para nós aprofundarmos este trabalho em equipa. Onde outros profissionais, e falou-me dos enfermeiros, mas há também farmacêuticos, há psicólogos, há técnicos, enfim, não quero aqui esquecer nenhuma profissão, mas todos os outros profissionais podem ter determinadas responsabilidades nesta equipa, de liderança médica, que não tinham há alguns anos. Estou perfeitamente aberto a novas soluções nas constituições destas novas equipas.

Que propostas tem a Ordem, nas suas competências legais, para captar e fixar médicos para zonas carenciadas?

Alguns dos aspetos que está a falar são sindicais, não me vou intrometer muito neles. A questão dos incentivos pode ser importante, ter condições para um médico e para os seus familiares, porque não é só o médico que tem que se deslocar – não se esqueça que um médico quando é especialista, tem sensivelmente 30 anos e portanto já tem uma família constituída, etc. Ter aqui condições para poder receber esse médico e a sua família nas zonas mais carenciadas. E estamos a falar, dependendo da especialidade, fundamentalmente das zonas do interior, mas também agora das grandes cidades. A Grande Lisboa está altamente carenciada, nomeadamente de médicos de família e em médicos de outras especialidades, nomeadamente médicos hospitalares. Aquilo que tem que ser feito é também a flexibilização das pessoas e começarmos a ter uma visão diferente sobre o internato médico desde muito cedo. É mais fácil fixar médicos que, desde o início da sua especialidade, possam iniciar fora dos grandes centros. Portanto, dando-lhes condições de formação na periferia, para depois desenvolverem a sua vida pessoal, a sua vida social e familiar e terem, pois, mais apetência para poderem desenhar o resto da sua carreira profissional nesses centros.

Sei que não é da competência da OM, é mais uma questão sindical, mas não defende os incentivos?

Falei deles no início. Obviamente tem que haver incentivos, muitas vezes o poder local tem feito e bem, tem ele próprio criado determinados incentivos para tentar atrair esses médicos. Devia haver a nível nacional uma avaliação dos locais mais carenciados para se poderem desenvolver incentivos específicos para determinadas especialidades e para determinadas áreas do país. Agora, a dimensão desses incentivos não pode ser aquilo que nós tínhamos no passado, porque esses incentivos não funcionaram de forma nenhuma. Os médicos estiveram lá um ano, dois, e depois deixaram esses hospitais. Os incentivos são uma matéria laboral, e não vou entrar aqui neste números, mas têm que ser suficientemente atrativos para poder manter esses médicos nesses hospitais.

Um bom médico deve ganhar o mesmo que um mau médico?

Em primeiro lugar, tem que haver obviamente uma remuneração base igual para todos os médicos. Isto é um princípio básico. Agora há determinados modelos que funcionam por ganhos em saúde, por objetivos, nomeadamente o modelo das USF, que são determinadas para um conjunto de objetivos, e depois há o modelo dos Centros de Responsabilidade Integrados (CRI). Devíamos pensar num modelo que, do ponto de vista da sua execução, fosse mais rápido. Nós estamos a criar USF há 15 anos e hoje não temos USF em todo o lado. São equipas que têm de atingir determinados objetivos. Se atingem esses objetivos têm uma remuneração que acompanha esse facto. Os CRI é exatamente a mesma coisa e eu acho que tem que haver um modelo, e aí, respondendo diretamente à sua pergunta, do SNS, que tenha um vencimento base e depois há um acréscimo salarial para quem atinge, enfim, os objetivos que foram delineados. Concordo perfeitamente com isso.

Quem comete erros graves pode continuar a ser profissional de saúde nessa especialidade? Por exemplo, um cirurgião que é mau pode continuar a ser cirurgião?

A resposta é evidente. Um médico que tecnicamente cumpre com as suas funções, de forma adequada, com qualidade, obviamente, pode continuar a desenvolver a sua atividade. Quem não o faz dessa forma não pode continuar a desenvolver a sua atividade.

Há casos de alguém que se tenha queixado?

Todas as queixas vão para o conselho disciplinar. Não há nenhuma que falhe, isso pode ter a certeza. Não há nada que entre na gaveta. Nisso sou intratável. Os médicos que têm capacidade técnica e que exercem a sua profissão respeitando o seu código deontológico, são bem vindos à Ordem dos Médicos. Aqueles que não fazem, não são, obviamente, bem vindos. Nós todos os anos temos sanções que aplicamos, sanções temporárias de não poderem exercer a medicina. Mas todos os anos há médicos que são expulsos e nunca mais vão poder exercer. Sou intratável nestas matérias disciplinares.

Estive a ver no site da Ordem dos Médicos que a formação e os exames clínicos realizados por pessoal não médico e não supervisionado está a colocar em causa a saúde dos doentes. Onde é que concluíram isso? No SNS, no privado?

Para a Ordem dos Médicos não há SNS, nem há privado, nem há social. Há cuidados de saúde. É como na Justiça é irrelevante se é no privado ou no social.

A Ordem vai a um sábado ou a um domingo a um hospital ver o que se passa?

Não, mas sabe porquê? Não podemos entrar num hospital privado nem num público sem autorização. É da lei.

Por que faltam médicos de família? O Governo anterior disse que ia resolver o problema e, na altura, eram 1,5 milhões…

São todos os governos, neste momento é 1, 7 milhões, tem vindo a aumentar. Há dois motivos para isso. Há um motivo histórico em que, na altura, o Governo não abria vagas para a medicina geral e familiar. Aliás, Portugal tem um número de médicos hospitalares em relação aos médicos dos cuidados de saúde primários muito elevado, devia ter mais médicos de família. Ao longo do tempo não foram formados médicos de família que fazem falta agora. A realidade hoje é outra. São centenas de médicos que são formados por ano de medicina geral e familiar, mas há dificuldade em fixá-los em determinadas áreas do país.

O fenómeno da imigração vai agravar mais as dificuldades no Sistema Nacional de Saúde?

Em primeiro lugar, do outro lado não há nacionalidades. Há doentes ou pessoas que necessitam de cuidados de saúde. Para os médicos todas as pessoas são iguais, independentemente da sua nacionalidade, da sua origem. Agora é natural que se há mais pessoas, se há mais procura em termos de cuidados de saúde, vai criar mais pressão. O problema que eu vejo aí, muitas vezes, é no turismo em saúde, que tem uma procura inesperada. Há pessoas que vêm do estrangeiro a Portugal para ter os seus filhos e voltam depois para o seu país. Isso cria um impacto, que o Ministério da Saúde tem que analisar, avaliar. Porque é uma população que nós não temos, muitas vezes não é acompanhada na sua gravidez, portanto, não podemos alocar recursos de saúde porque são situações que não são expectáveis. E essa situação devia ser cuidadosamente analisada. O SNS, em qualquer parte do mundo, tem recursos limitados.

Aqui parece que não.

Às vezes existe a tendência de se achar que o SNS é ilimitado, mas não é. Por isso precisamos de ter aqui uma maior organização.

O que acha desta polémica da obrigatoriedade dos recém-formados médicos serem obrigados a ficar no Serviço Nacional de Saúde?

Não concordo com isso. Em primeiro lugar, acho que é importante o SNS se desenvolver mais para ser mais competitivo e conseguir ir buscar esses médicos. Ganham os profissionais e ganham os doentes se isso for feito. Agora os médicos, do meu ponto de vista, são cidadãos como os outros. Se todas as profissões tivessem que dar aqui um tempo ao Estado até não sentia isto como uma desigualdade

Li no seu currículo que estudou muito o fenómeno do burnout na classe médica. Não há hoje em dia também um certo exagero, em que está tudo com problemas psicológicos? Parece que o mundo de repente virou uma desgraça completa.

São novas designações para problemas que sempre existiram, acho que é mais isso. E hoje o SNS não é a mesma coisa que era dantes. Há uma pressão brutal sobre o SNS, até porque as pessoas estão mais informadas e são mais exigentes. Recordo-me quando era estudante que, às vezes, até me custava porque íamos a uma reunião de serviço que era uma manhã inteira, onde estavam os médicos mais novos, os mais velhos, os estudantes de medicina e falava-se dos doentes, discutiam os casos, etc. Era diferente, hoje não é assim. Antes de ser bastonário fui a uma reunião de serviço, onde tinha estado quando era estudante. Sabe como é agora? Obviamente que têm uma reunião de serviço, os médicos entram e saem. Um tem que ir para o bloco, outro tem que ir para consultas ou tem que ir para a urgência. É completamente diferente. É uma reunião muito mais curta e está toda a gente com pressa. Toda a gente tem coisas para fazer e perdeu-se um pouco isso por causa desta pressão. Isto é importante. Isso não é maneira de fazer medicina. Hoje os médicos não tem tempo de se juntar. Não têm a disponibilidade que tinham antes. Porquê? Porque hoje são números.

Mas há menos paixão ou, se quiser, menos humanismo?

Sim, mas do sistema. Quando se avalia um médico com números como é que quer que haja humanismo? Em todos estes sistemas de avaliação que existem, onde é que é avaliado precisamente esta questão do humanismo, do profissionalismo, da ética? Onde é que isso é avaliado nos hospitais? Não é. A avaliação é feita em folha de Excel. Até vou dizer mais do que isso. O Ministério da Saúde não se preocupa se o doente foi bem ou mal operado, quer números. O sistema está preocupado com isto? Não está. O que é que o sistema quer? Quer dizer que este ano operou muito mais do que no ano passado, independentemente da qualidade. Se calhar sim, e tem toda a razão, temos de começar a preocupar-nos em avaliar a qualidade dos cuidados de saúde, o valor em saúde, avaliar o humanismo. Não tenho dúvidas nenhumas que o grande desafio da nossa sociedade agora vai ser o desafio do humanismo, da ética, do profissionalismo, até porque vem aí uma coisa fulgurante, exponencial que é a inteligência artificial. A inteligência artificial vai mudar isso tudo e as pessoas não têm bem a ideia da evolução que está a ter a inteligência artificial na saúde e que vai substituir muitas atividades, em muitas áreas.

Vai ser a salvação do SNS?

Para já é capaz de não ser, mas a inteligência artificial vai ajudar. O caminho é por aí: é no desenvolvimento da relação entre o médico e o seu doente. E esse é que é o grande pilar da medicina moderna, o desenvolvimento desta relação que passa por tudo aquilo que falámos. Passa, obviamente, pela qualidade dos cuidados que o médico está a prestar àquele doente, mas passa também por estas questões de proximidade e de humanismo que são muito, muito importantes.