O BARULHO QUE AFINAL NÃO SE OUVE
1. Tendo-se entrado na silly season – a frivolidade transformada em momento alto –, vale a pena retornar sobre o tema da reforma da Justiça, com os próprios tribunais de férias? Antecipando o que aí vem, achamos que sim.
Ultimamente, publicou-se bastante sobre a desejada reforma da Justiça, a sua amplitude e contornos, quer por banda dos políticos quer dos agentes forenses. Figuras de vários quadrantes – o ‘movimento dos 50’ (e mais), com opositores que logo lhe anotaram um contrapé de interesses, tendo em conta os antecedentes de alguns, outros por não lhes reconhecerem os dotes que agora alardeiam –, adensaram a tormenta.
Só o cidadão comum, aquele que vai ao Tribunal e sofre na carne as vicissitudes da interminável senda em que se envolveu ou o envolveram é que em regra não é ouvido. Isto apesar de o Ministério da Justiça alimentar desde 1996, um Observatório Permanente da Justiça, que por certo poderia fazer ou promover um amplo e bem estruturado inquérito aos cidadãos que nos últimos anos usaram ou foram vítimas do sistema de Justiça. Sem minimizar as tentativas recentes realizadas – Inquérito sobre a Justiça, de Pedro Magalhães/Nuno Garoupa, 2024, IPPS-ISCTE – numa sondagem à população sobre o funcionamento das instituições judiciárias, respostas que aliás se mostraram muito influenciadas pela imagem transmitida pelos próprios OCS.
As intervenções vêm de tantos lados e a aparente e injustificada surdez de algumas entidades é tal que a degradação das instituições, na opinião de muitos, se tornou inevitável. E de caminho metem-se no mesmo saco alguns aspetos que funcionam regularmente, e desmotivam-se muitos magistrados/as bem como funcionários/as, que cumprem o melhor possível e trabalham até ao burnout.
Como sair deste estado?
PROPOSTAS DOS PARTIDOS POLÍTICOS
2. São de diferente valia os contributos dos programas dos Partidos Políticos, para a área da Justiça, apresentados na campanha das últimas Eleições Legislativas (10.03.2024). Detetam-se, porém, elementos comuns sobressalientes, e desde logo a indicação de que a Justiça precisa de uma reforma profunda e não de alterações casuísticas, mediante um consenso alargado.
Eis alguns dos tópicos mais focados nesses programas: o ataque à morosidade dos processos, em especial os ‘megaprocessos’ penais e nos tribunais administrativos e fiscais, usando as novas ferramentas digitais, a redução dos expedientes dilatórios, o cumprimento efetivo dos prazos (não apenas pelos advogados e solicitadores, diremos nós, como hoje sucede, mas pelas secretarias e pelos magistrados), a diminuição da extensão das peças processuais, o uso de linguagem clara e concisa, facilmente percetível por não juristas, a revisão do regime de acesso aos tribunais e a baixa das custas, enfim, o alargamento da rede de Julgados de Paz, uma justiça de proximidade para pequenas causas.
Para uma reforma mais profunda, preconizam-se alterações constitucionais viabilizando: a independência financeira do sistema de justiça, a eventual existência de uma ordem única de tribunais, a clarificação dos poderes hierárquicos no MP, a queixa constitucional direta mediante o recurso de amparo, a modificação do efeito suspensivo de alguns recursos para o TC, repensar a fase de instrução com efeito nos ‘megaprocessos’, a introdução do princípio da oportunidade, o reforço da oralidade e da simplificação das formalidades.
Tudo isto tendo como pano de fundo a valorização das carreiras dos profissionais que servem na Justiça e o reforço dos apoios à decisão em tempo útil.
ENTRETANTO…
3. Não deixa de surpreender como é que nas várias instituições às quais a lei confere poderes não apenas para modificar as leis (AR e Governo) mas para propor a sua mudança – o Conselho Superior da Magistratura (CSM), a Procuradoria-Geral da República (PGR), o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) –, tudo se passa sem aparente angústia, por exemplo, deixando prescrever crimes graves, designadamente atribuídos a figuras públicas.
Na verdade, aquelas instituições dispõem, além do mais, de serviços de inspeção permanente dos tribunais e do MP que carreiam elementos atualizados sobre o funcionamento e as disfunções dos sistemas, prevendo a lei expressamente que possam/devam apresentar propostas de modificação das leis.
3.1. Mas se lermos os relatórios daqueles Órgãos não se vê grande rasto das preocupações que trazem meio mundo afadigado, com exceção da constituição de um Grupo de Trabalho para os megaprocessos penais no CSM e a aderência à inovação digital. Não deixa de ser curioso que no Relatório Anual do CSM 2023, ao referirem-se as queixas dos cidadãos sobre o funcionamento da Justiça (606) se diga que cerca de metade se reportavam a discordância com a decisão tomada pelo Magistrado Judicial no processo, no que não haveria nada a fazer, mas a «outra parcela tem a ver com alegadas delongas em processos judiciais e as restantes com outros assuntos…», do que tudo se consumou em que «as queixas de cidadãos deram origem a três averiguações sumárias».
3.2. Pelo lado da PGR, ao ler o Relatório Síntese do Ministério Público de 2023, o tão esperado relatório que a PGR vai apresentar à AR, as coisas não são diferentes. No repositório de números, tabelas e quadros comparativos, raramente se denunciam constrangimentos na ação da Justiça, e tirando o ponto em que se referem os fenómenos criminais que maior aumento e diminuição registaram entre 2022 e 2023, não fica uma imagem do que sejam as grandes questões com que a instituição, ou melhor, o país se debate, e que tenham merecido um capítulo final de onde se alcance uma análise prospetiva nacional, os estrangulamentos, que parece não haver… Impressiona, pelo número e qualidade das consultas, a aparente subutilização de um organismo tão importante como é o Conselho Consultivo.
Um parêntesis para um pormenor que aponta em favor do abandono do princípio da legalidade para o da oportunidade: no campo criminal, os institutos de consenso foram aplicados num total de 31.620 casos (31.133 casos de suspensão provisória do processo e 487 arquivamentos por dispensa de pena), correspondendo a 34,5% dos processos com indiciação. Quer dizer, na prática o princípio da oportunidade ou semelhante já funciona.
3.3. Sobre a tão falada morosidade, e como resultou da entrevista pública da mais Alta Representante do MP, pareceu-me alimentar-se a cultura de que os prazos não são para cumprir – o prazo era uma pequena mola real que ancestralmente fazia mover a Justiça concreta –, como se a investigação criminal se pudesse perpetuar ad aeternum (leia-se até à prescrição), acompanhada das escutas, onde os inspetores e magistrados aguardam sentados que os arguidos se auto incriminem, continuando os processos pendentes. Se até o Relatório anual é apresentado com mais de dois meses de atraso, sob o olhar da AR, por que motivo não se há de passar o mesmo com os processos?
Parece estarmos em face de duas visões quase opostas: a da opinião publicada e dos programas dos Partidos, e a das instituições judiciárias.
O QUE PODE SER FEITO
4. No programa da AD, sugere-se a criação de uma Comissão Permanente para a Reforma da Justiça (CPRJ), a funcionar preferencialmente junto da AR, com a missão de apresentar uma Proposta de Reforma Integral para a Modernização do Sistema de Justiça e medidas urgentes para a Jurisdição Administrativa e Fiscal, aproveitando dos contributos já existentes.
Parece um bom ponto de partida.
Como resulta do breve bosquejo feito sobre as propostas constantes dos programas dos Partidos, existe um lote alargado de medidas consubstanciando uma reforma da Justiça em pontos essenciais e pressupondo um consenso alargado.
Até não parece difícil, no quadro de intenções traçado, encontrar um modelo prático de levar a cabo o empreendimento, sem perda de coerência e de forma gradual. Apenas carecerá de saber como se articulará aquela Comissão Permanente com o Governo, sem dúvida em posição de imprimir o dinamismo que se espera.
Pretende-se tão só que também aqui seja tomada uma decisão de fundo, que se arrasta no tempo, e se inicie a reforma da Justiça já!