O Matuto e o Alfa Romeo

matuto = diz-se de quem vive no mato e a quem falta traquejo social; caipira; matreiro. O verbo matutar, significa meditar ou ponderar.

O Matuto teve um Alfa Romeo. Vermelho! Isso mesmo, vermelho! Das coisas que mais dava prazer ao Matuto, era o roncar dos 125 cavalos do seu Alfa Romeo vermelho, o “Labaredas” – como era carinhosamente chamado. Naturalmente, o Labaredas exigia alguma manutenção. O Matuto nunca foi de grandes mimos com os carros. Mas, caramba, um Alfa Romeo é outro nível. Assim, lavar o Labaredas era tarefa obrigatória. O dia escolhido para a liturgia das espumas e flanelas, era o domingo. Bem cedinho. O sol é inimigo duma boa lavagem. O Matuto, saía de balde em punho, abraçado a panos, esponjas de espuma, esponjas de microfibra, detergentes, amaciadores, ceras, tiras de couro, flanelinhas, aspirador em miniatura, espátulas, escovas de pelos suaves, escovas de borracha termoplástica (para os cantos de difícil acesso), luvas de lã sintética, luvas de polipropileno e poliamida, toalhas de poliéster, toalhas de nylon, shampoo, gel de brilho, massa de polir, micro óleo, graxa líquida, limpa vidros, spray limpa ar, silicone, pulverizador, capinhas de polietileno tereftalato para proteger as portas contra os arranhões do dia a dia… e por falar em arranhões, esse era o inimigo figadal dos carros usados. Desvalorizava o veículo. O Matuto tinha muito respeito pelo fenómeno “desvalorização”. Como qualquer bom Português, o Matuto é um “mão de vaca” – um avarento, pão duro, sovina, forreta, somítico, um fominha, um fuinha.

Por isso mesmo o Matuto cuidava religiosamente do seu Alfa Romeo, todos os domingos ao romper da aurora. Era a missa matutina do Matuto. O Matuto saía para a praceta deserta. Nas ruas, apenas outros comungantes saindo para a seu ritual de culto. A cerimónia religiosa começava com uma primeira de mão de água limpa – era essencial retirar os pós e resíduos urbanos da chaparia. Depois entravam em acção as esponjas com os mais variados detergentes. Suave. Muito suavemente. Numa delicadeza de monge tibetano a fim de não riscar a pintura. O Matuto tinha horror aos risquinhos que poderiam… sim, amigo leitor, já sabe: a famigerada desvalorização. Qualquer arranhão ou amassadinho deixava o Matuto com um nervoso miudinho de arrepiar. Muito carinho nessa hora. Imensa ternura. Infinita meiguice. “Easy does it, all the time” – cantava o Frank Sinatra. Delicadeza, gentileza e polidez. Muita polidez. Slosh, slosh, slosh… ensaboar… espumas… slosh… ensaboar… mais espumas. Não podia secar ao sol. Cuidado com as manchas na pintura.

De seguida, vinham umas esguichadelas para eliminar resquícios de sabão. Cadáveres de insectos; porquices da atmosfera citadina; caca da passarada. Tudo era purificado, purgado e eliminado. Cuidar dos tapetes era tarefa que o Matuto não apreciava. Aquele pó velho de sapatos alheios ou familiares, entrava pelas narinas. Espirro! Espirro! Espirro! Arre que maçada! Os tapetes eram sacudidos, limpos e aspirados. Sim, havia uns aspiradores portáteis que eram uma graça. Objectos elegantes, giros. “Cute” – diriam os ingleses. Bonitinhos. Aí, era o momento das jantes (calotas, no Brasil, por favor). Um campeonato à parte. Havia jantes de vários formatos, cores e materiais. O Matuto favorecia as jantes raiadas que tinham um efeito de setas no asfalto. Coisa de filme. A etapa final era longa. O Matuto assegura que esta fase era prolongada. O tempo dilatava. Passar cera e dar o polimento final era coisa pausada e vagarosa. Era essencial nesta fase evitar irritantes arranhadelas na pintura que poderiam desvalorizar o carro – aconselhava o Matuto. As flanelas e farrapos de couro operavam a sua magia. O Matuto, matutava para si mesmo que o Labaredas estava com óptimo aspecto. Que carro lindo; ‘what a wonderful world’ – cantarolava o Matuto, na sua melhor imitação de Louis Armstrong. Os cromados brilhavam e a pintura reflectia o sol nascente.

Naturalmente, todo este ritual foi substituído pelas pinturas metalizadas. Agora, o brilho da chaparia é constante. As esponjas e flanelas foram relegadas para a secção da arqueologia automóvel. Hoje em dia, o Matuto lava o carro no sistema Elefante Azul. A lavagem é “imaculada, protegendo carroçaria e pintura”. O Elefante Azul elimina “poeiras, mosquitos e lamas”. O Elefante Azul tem “jactos de água que multiplicam a eficácia do sabão e da cera, e a água é desmineralizada para evitar as manchas na pintura”. O Elefante Azul “atomiza a água consumindo o mesmo que um duche matinal”. Tudo muito ecológico e asseado. Até existem umas maquininhas para limpar tapetes. Uma gracinha! É o progresso – considera o Matuto. Agora, o Matuto não mais se preocupa com a desvalorização do seu carro. Agora, o Matuto não mais sai cedinho de balde em punho para a praceta. A liturgia dominical perdeu o romantismo. Aquela moleza. “Que saudades do Alfa Romeo vermelho, o Labaredas” – suspira o Matuto.

E sempre acontecia que na volta da liturgia dominical – recorda o Matuto – todos os devotos sorriam, felizes. O Vasco era um habitué nestas andanças. Escrupulosamente, cuidava do seu BMW 2002. Quando o Vasco chegava perto do seu prédio o Matuto escutava a esposa do Vasco, mulher de porte aristocrático, desabafar à janela para a vizinha: “se ele me acariciasse da mesma maneira que lava aquele carro, eu era a mulher mais feliz desta cidade!”. O Matuto não sabe exactamente qual o significado deste desabafo, mas garante que havia muitos, com vontade de fazer a vontade, aquela mulher de porte aristocrático. “Cuidado aí, ó camarada Vasco” – advertia o Matuto.