A geometria euclidiana do filho favorito de Deus

Ernesto Lazzatti nasceu mestre: era um tratado e, ao mesmo tempo, uma doença contagiosa.

Ingeniero White, Buenos Aires. Aceitemos sem custo que só na América Latina uma terra pode ter um nome como este. Fica a dez quilómetros de Bahía Blanca, é um porto que foi ganhando a sua importância, sede de um clube de futebol chamado El Club Atlético Puerto Comercial, que usa camisolas aos quadradinhos verdes e amarelos, coisa para fazer qualquer um gastar as glândulas lacrimais ao vê-las andar para um lado e para o outro de um retângulo de relva como o do estádio que recebe os grandes rivais citadinos do Pacífico, do Liniers, do Olimpo, do Leandro Nicéforo Alem, do Argentino ou do Porteños Sud. Ah! Que clubes espantosos! Não há um que não fervilhe de histórias inconcebíveis. Mas só o Atlético gerou Ernesto Lazzatti, El Pibe de Oro, o extraordinário Lazzati.

Ernesto enchia o campo com o seu jogo feito de inteligência da cabeça aos pés. E era um fedelho. Aos 16 anos muito melhor que a maior parte dos homens que jogavam com ele ou contra ele. Por isso não tardou a seguir para oBoca Juniors. Estreou-se com a camisola azul e amarela, inspirada na bandeira de um navio sueco que acabara de aportar em Riachuelo no dia em que o clube foi fundado, a 8 de abril de 1934, contra o Club Atlético Chacarita Juniors de Villa Maipú. Olhos esbugalharam-se de espanto pela naturalidade com que Lazzati tomava conta do seu posto. Príncipe-menino do meio-campo, apaixonou-se por Caminito e pelo Barrio de La Boca, ficou 14 anos no clube e formou, com Carlos Adolfo Sosa, o Lucho, e com Natalio Agustín Pescia, El Leoncito, um trio fascinante. Os hinchas enchiam a Bombonera para procurar entender a geometria euclidiana dos seus movimentos sempre certos, elegantes com postulados, inventores de jogadas que terminavam em golos inevitáveis. Sim, Ernesto era um tratado e ao mesmo tempo uma doença contagiosa. A seu lado não havia quem pudesse jogar mal. Transmitia a serenidade da arte com repentes de génio. Elipses e hipérboles sobre a relva. E, a toda a altura das bancadas praticamente verticais, os diálogos dos adeptos multiplicavam-se à mistura com exclamações. Ninguém discutia El Pibe de Oro nem o seu método. Procuravam, sobretudo compreendê-lo. E, no entanto, parecia tão fácil, tão simples como o rolar da bola em efeitos de bilhar. Mas quantas vezes é a simplicidade complicada de discernir? Quantas vezes as equações simples baralham os senhores da matemática? Quantas vezes questionamos para com os atilhos dos nossos sapatos por que hão de ser ínvios os caminhos desse ser imponderável que criou o céu e a terra por sua auto-recriação sem pedir a opinião a ninguém? Diziam os mais velhos: «Ernesto eres el hijo querido de Dios!». Fosse, portanto, feita a sua vontade. Até ao dia em que…

1947: Ernesto Lazzatti era um jogador livre. Terminara o seu último contrato com o Boca Juniors e os diretores do clube decidiram que já cumprira a carreira para a qual fora fadado. Choveram convites. Tinha apenas 32 anos e estava consciente de que ainda poderia ter muito para dar. Mas o coração tem razões que a razão desconhece, como disse uma vez o mestre Blaise Pascal, num aforismo que o universo aprendeu a saber de cor. Falou de coração aberto para os jornais: «Me voy a hacer vida de turista, porque contra Boca no puedo enfrentarme». Havia pungência no seu lamento. Chamaram-no para jogar noBrasil e noPeru. Não foi. A sua vida de turista, como ele dizia, era passada entre as ruas de Las Barracas, da Avenida Vélez Sársfield a Zabaleta, das vielas paralelas àFerrovia General Manuel Belgrano, espreitando as águas sujas do Río Matanza, em Vuelta de Rocha, sussurrando a letra do tango de Gardel: «Mi Buenos Aires querido/Cuándo yo te vuelva a ver/No habrá más penas ni olvido/El farolito de la calle en que nací/Fue el centinela de mis promesas de amor/Bajo su quieta lucecita yo la vi/A mi pebeta luminosa como un Sol». O sol de Ernesto parecia ter-se apagado quando o seu amigo Severino Varela, o uruguaio a quem chamavam La Boina Fantasma, o convenceu a jogar noDanubio Fútbol Club, da Curva de Maroñas em Montevidéu. Voltou a ser enorme. Logo no primeiro dia, quando impulsionados pelo regresso de Lazzatti aos relvados, os seus companheiros o seguiram numa avassaladora vitória sobre o Peñarol.

Ernesto não esquecia oBoca Juniors. E a porta da Bombonera abriu-se-lhe de novo para que fosse treinador de uma equipa campeã que contava com Pancho Lombardo, Eliseo Mouriño, Pescia, Navarro, Baiocco, Borello, Rosello e Marcarián. Todos eram pura vontade e pouca arte. Coração que se entende mas não se explica. E na baliza havia Julio Elías Musimessi, El Arquero Cantor, também autor de tangos: «Dale Boca, viva Boca, el cuadrito de mi amor». Lazzatti, esse, sorria.