Alain Delon morreu esta semana, depois de uma dança de dois anos com a morte. Em 2022 pretendeu fazer suicídio assistido, mas o pedido foi-lhe recusado. Há poucos dias tinha dito qualquer coisa como: «A morte não me preocupa, pois viver neste tempo não me interessa nada».
Há muitos anos que Delon era um homem fora do seu tempo. Foi considerado o ator mais bonito do mundo, mas a beleza é por natureza passageira. Foi uma das estrelas maiores do cinema francês, mas este foi inapelavelmente asfixiado até à morte pelas produções americanas. Para tudo acabar mal, os valores em que acreditava passaram de ‘moda’, deixaram de existir.
Inversamente, Alain Delon fez parte do tempo da minha juventude, sobretudo com dois filmes admiráveis: Rocco e Seus Irmãos e O Leopardo, ambos de Luchino Visconti.
O primeiro vi-o pela primeira vez em Paris e depois em Lisboa, numa sessão do Cineclube Universitário. Considero-o talvez o melhor filme de sempre. O mais forte, o mais intenso, o mais comovente, o mais substantivo, o que me tocou mais fundo. É um filme da fase final do neorrealismo, em que já havia espaço para o drama individual. Retrata a vida de uma família emigrante, que se muda de uma aldeia para os subúrbios de Milão, onde vive num tugúrio miserável. O homem da casa morreu e a mulher viúva vive com cinco filhos, alguns já adultos.
O mais velho (interpretado soberbamente por Renato Salvatori) torna-se boxeur e sustenta a família. Mas envolve-se com uma prostituta (Annie Girardot) e entra em decadência. O irmão mais novo, Alain Delon, embora detestando o boxe, toma o lugar do outro e torna-se também boxeur para amparar a mãe e as irmãs. Mas acaba por se embeiçar pela mesma mulher – e os dois irmãos, que se adoravam, são arrastados para uma luta terrível, brutal.
A pobreza da Itália no pós-guerra, o sórdido ambiente familiar, os sentimentos levados ao extremo, o clima violento do boxe visto por dentro, a força dos laços familiares, as paixões desenfreadas e doentias, tudo isso está presente nesta obra-prima talvez excessiva mas que nos transporta para o âmago dos sentimentos humanos.
O outro filme, O Leopardo, ainda que do mesmo realizador, Visconti, é completamente diferente. Já não me recordo onde o vi pela primeira vez. Não se passa no ambiente desgraçado de uma barraca na periferia de uma grande cidade industrial mas no interior sofisticado de um palácio na Sicília, no Sul de Itália, um século antes. E já não são emigrantes pobres em luta pela sobrevivência mas uma aristocracia que tenta evitar o declínio. É aqui que o príncipe Salina (Burt Lancaster) pronuncia a célebre frase «É preciso que alguma coisa mude para que tudo continue na mesma». Enganava-se rotundamente, porém. Nada continuará na mesma. O mundo de que ele fazia parte também está condenado.
Neste cenário como pano de fundo, desenrola-se um romance entre o sobrinho predileto do príncipe (Alain Delon), que ele adorava mas que para seu desgosto se juntara às tropas do revolucionário Garibaldi, com a filha de um burguês endinheirado (Claudia Cardinale), que o príncipe desprezava. É uma tentativa desesperada de os nobres se salvarem do naufrágio, juntando os seus pergaminhos ao dinheiro.
Neste filme, muito cuidado esteticamente, que Visconti exigiu ser a cores e não a preto e branco como inicialmente era previsto, o par Delon-Cardinale constituiu um dos mais belos da história do cinema.
De Alain Delon ficam-me as imagens sobretudo nestes dois filmes – num, na pele de um soldado revolucionário de uma família aristocrática, no outro, de um jovem que compromete o futuro para ajudar a família pobre. Os dois filmes estão separados por três anos (1960 e 1963), mas parecem mais distantes no tempo – pela realidade que retratam e pela abordagem, num caso neorrealista e crua, no outro romântica e exuberante.
Delon seria um excecional ator? Talvez não. Mas impunha-se pela finura dos traços, pela elegância e correção dos movimentos , pela seriedade com que encarava a interpretação. E com isto tornou-se um grande ícone e marcou fortemente uma época. Mas tudo isso foi há muito tempo. Há demasiado tempo para ele. Agora era um corpo envelhecido, amargurado com a vida, ao qual o presente não dizia nada.
Ao longo de uma recheada carreira, Alain Delon desempenhou papéis em muitas épocas. Mas a esta nunca se adaptou.