As crianças não têm filtro. Muito menos têm autocontrolo. Quando embicam numa coisa não se rendem nem desistem. Esperneiam e insistem até ao limite das suas forças. Elas vão até onde deixarmos ir. Esticam a corda tal como os cães mal treinados esticam a trela. É assim com os adultos e é assim que lidam umas com as outras. Mas nós, adultos, não percebemos esta dinâmica. Tentamos transformar as emoções em lógica e racionalizamos cada pedido dos meninos. Somos, na verdade, o bicho mais manipulável ao cimo da terra em conflito permanente com os seres vivos mais inteligentes e manipuladores que existem.
A consequência disto é que temos as nossas vidas viradas do avesso. Os miúdos quando pedem uma coisa não quer dizer que a queiram verdadeiramente e quando se queixam não quer dizer que estejam mesmo em sofrimento profundo. Eles têm mais vezes vontades do que necessidades.
No mundo delas esta dinâmica funciona bem. Autorregulam-se. Elas não guardam ressentimentos. O caixa de óculos da segunda-feira pode voltar a ser o melhor amigo na terça-feira. Os amigos servem só e apenas para se divertirem. Quando não resulta, não resulta e seguem em frente. Não se levantam conceitos complicados como a empatia, qualidades, generosidade ou sequer inteligência. Os amigos são instrumentais: joga à bola, serve para amigo. Simples.
No entanto, segundo os nossos parâmetros só numa prisão de alta segurança se vive um ambiente tão violento quanto o do recreio de uma escola. Eles insultam-se, lutam e fazem grupinhos em que se excluem uns aos outros sem critério aparente. O que visto cá de cima é chocante. E ainda mais incompreensível é quando nos apercebemos que no dia seguinte estão novamente em volta de uma bola como se tivessem memória de peixe. Os miúdos vivem em jogos silenciosos de estratégia com regras próprias em que todos os dias se começa uma partida nova. Esta dinâmica é pouco compreendida pelos adultos.
Os adultos, apesar da idade, interpretam mal o mundo das crianças e complicam. Quando outra criança insulta a nossa ou se recusa a brincar com o nosso menino é como se uma faca tivesse atingido o nosso coração. O nosso orgulho é ferido de morte e acionamos o instinto de proteção que só deve ser acordado em tempos de guerra. E depois é o descalabro. Os pais transformam-se em máquinas de guerra sem controlo e disparam em todas as direções. São os professores, os auxiliares, os pais dos outros meninos e só não destratam a outra criança porque a lei não permite. Só muito tarde, quando já minaram todo o terreno, é que dão conta das tréguas entretanto assinadas entre as crianças e que a bola voltou a rodar. No mundo das crianças os graus de violência que o regula são estabelecidos por elas e só por elas, quando os adultos se metem estragam tudo, como se estraga o arroz quando metemos a colher antes de estar cozido. Claro que há mínimos: não vale arrancar olhos. Isso e a violência online. É por isso que telemóveis e crianças não deviam andar sozinhos, assim como não atravessam a rua sem dar a mão.