Rogério Oliveira. “Culpamos os Deuses pela impotência”

Cansados do sofrimento que se vive na Palestina, os Boémia soltaram um grito quase de desespero: Nem Jeová Vai Lá (À Palestina). Cantam-no contra a morte e contra a barbárie. Gravaram-no e vão apresentá-lo ao vivo, entre muitos apoios e ataques sofridos pela contínua intolerância das redes sociais

Em Setembro de 2000 eu estava na Faixa de Gaza. A Palestina parecia estar prestes a comemorar, finalmente, a sua assunção ao Estado de Direito baseada na posição do Primeiro-ministro israelita Ehud Barak, eleito no ano anterior, de retirar as forças militares do sul do Líbano e participando nas negociações com a Autoridade Palestina de Yasser Arafat e com o Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, durante a Cimeira de Camp David de 2000. Quando passei pelo primeiro check point vi a bandeira branca, verde, vermelha e negra da Palestina hasteada, tremulando orgulhosa ao vento. As fardas cor-de-azeitona dos soldados de Israel misturavam-se com as azuis claras dos seus inimigos. Na altura, pensei que estava a assistir ao desenrolar da História. Mas a História é, como os caminhos do Senhor, insondável. A Palestina continua a ser um lugar de barbárie. Uma barbárie contra a qual os Boémia lutam cantando. Rogério Oliveira, um amigo antigo, filho do meu querido sr. Oliveira, do Farta Brutos, é a cara deste NemJeová Vai Lá (À Palestina). «A urgência é ontem!», gritam. «É urgente a denúncia. É urgente um cessar fogo imediato. É urgente a Paz».

Esta produção exigiu muitos meios? Pelo menos mexeu com muita gente, não? A produção foi algo espontâneo fruto da nossa indignação com a situação na Palestina. Entre o grupo reunimos esforços e valências para chegar ao resultado final de forma urgente. Entre nós, os sete do grupo, o Alain Vachie, que é o homem responsável pelos nossos espectáculos ao vivo, e a Suse Ribeiro, que tinha o estúdio da Valentim de Carvalho disponível para gravar a um domingo. A canção viu a luz do dia abraçada pela boa vontade de todos. Pensámos que tínhamos que dizer algo, denunciar! Fazer um clamor pela paz, sem dedos apontados ou culpas diretas! Ironicamente culpámos os Deuses pela impotência e abandono deste povo martirizado que está a ser vítima de um genocídio. 

Têm sentido resposta por parte do público? Sim, bastante. A grande maioria das pessoas que ouvem o tema reage de forma positiva e solidária, quer pelas mensagens que nos deixam quer pela partilha que fazem da canção. Mas é claro que também recebemos mensagens de ódio, típicas das redes sociais. Muita gente baralha questões humanitárias com questões partidárias, esquecendo o mais importante que são as pessoas! Aqui o que se trata, em primeiro lugar, é a questão humanitária! Todos os dias morrem inocentes, é urgente um cessar-fogo imediato! Muitos outros colegas ligados à música, escrita e artes em geral, também se têm manifestado e presenteado com mensagens motivadoras. 

Vão apostar em espectáculos ao vivo? Sim claro! Temos preparado um espectáculo novo com este e outros temas! Editámos no final do ano passado um álbum novo, Génese, e temos sempre muita vontade de nos apresentar ao vivo. Para mais, este ano, marca 25 anos desde o primeiro álbum dos Boémia e temos que celebrar. E a melhor forma de o fazer é junto das pessoas, em festa, ou não fosse a nossa música Popular.

Uma homenagem!

Os Boémia anunciam esta canção como uma homenagem: «Esta é a homenagem a todos os homens, mulheres e crianças que morreram ao longo dos últimos 76 anos, 10 meses e 2 dias e a todos os que lutam por uma Palestina Livre». Por isso faz sentido perguntar ao Rogério: Como vês o futuro da Palestina? Olha, o que desejo, e como canto na canção, é ver a Palestina independente, inteira e em paz! Não pode haver lugar no mundo para a guerra, não pode continuar a ser aceitável. E não se trata de lirismo!  Os vários governos de todo o mundo têm de deixar de andar à porrada com os nossos punhos e a derramar o nosso sangue em nome dos interesses deles que afirmam ser nossos, instigando-nos uns contra os outros, separando-nos por raças, credos e religiões, enchendo-nos de medos, criando ódios e apodrecendo-nos por dentro para deixar a fatura do nosso lado. Uns pagam caro, com a própria vida, outros com a alma e com o bolso, mas pagamos todos! Basta olhar atrás na história para observar os mesmos padrões. O que estamos a assistir na Palestina não é só a uma guerra; é a um genocídio de um povo. O que é inaceitável!  Só pode haver lugar a uma voz, a da indignação! Sejamos gente! Isto diz-nos respeito a todos! É urgente um esforço coletivo por todo o mundo para travar esta barbaridade. Não é humanamente possível ficar indiferente a isto. Todas as questões, até as mais complexas, podem ser negociadas e sanadas sob a bandeira da paz. O futuro da Palestina depende de todos nós.

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Volto a 2000. Quando estive na Palestina sofredora. Os israelitas apresentaram novas exigências: controlo sobre todas as fronteiras e principais cursos de água, anexação definitiva de 12% do Vale do Jordão, a região mais fértil da Cisjordânia, reservando-se ainda o direito de permanecer entre 12 a 30 anos em outros 10% dessa região. Yasser Arafat rejeitou o acordo, exigindo, como pré-condição para as negociações, a retirada de Israel para as fronteiras de Junho de 1967. Após o colapso das negociações, começou a Segunda Intifada. Hoje, mais uma vez, os aparelhos de televisão fazem-nos entrar pela casa dentro imagens abastardadas de explosões e sangue e mortos. É a Palestina de hoje. Tão distante daquela que Eça de Queiroz descrevia assim: «Na luminosa meiguice da tarde, a estrada alongava-se através de jardins, hortas, pomares, laranjais, palmeiras, terra de promissão, resplandecente e amável. Por entre as sebes de mirtos perdia-se o fugidio cantar das águas. O ar todo, de uma doçura inefável, como para nele respirar melhor o povo eleito de Deus, era um derramado perfume de jasmins e limoeiros. O grave e pacífico chiar das noras ia adormecendo, ao fim do dia de rega, entre as romãzeiras em flor. Alta e serena no azul, voava uma grande águia».

A terra da paz é uma terra de guerra.

E nem Jeová lá vai.