Recitava para com os seus atilhos os poemas da melancolia

Americo Tesoriero foi uma das figuras mais fascinantes da história do futebol argentino

Americo Miguel Tesoriero era grande como poucos. Enquanto defendeu as balizas do Boca Juniores, primeiro entre 1917 e 1920 e, depois, de 1922 a 1927, tinha tanto tempo sem nada para fazer que dizia, para com os seus atilhos, poemas de cor. Gostava de Borges. Na sua cabeça havia lugar para um silêncio particular que abafava os gritos dos hinchas: «Nadie rebaje a lágrima o reproche/Esta declaración de la maestría/De Dios, que con magnífica ironía/Me dio a la vez los libros y la noche/De esta ciudad de libros hizo dueños/A unos ojos sin luz, que sólo pueden/Leer en las bibliotecas de los sueños/Los insensatos párrafos que ceden».

Tesoriero nasceu em março de 1889 e, ainda garoto, fundou um clube de rua – Coronel Brandsen. Só o nome já ressoava às batalhas que teria de travar. E a miudagem jogava peladas rijas num espaço largo de terra batida em frente de um açougueiro, interrompida de quando em vez por homens corpulentos que carregavam carneiros em sangue e lombos de vaca às costas.  

Um poeta é um poeta e é um poeta. Pouco importa se passa metade da existência entre dois postes e debaixo de uma trave, fehado numa grande-área de 16,5 metros por 16,5 metros. Tesoriero era magro, de cabelo sempre desacertado e passou a ser um ídolo do Barrio de La Boca ainda no tempo do futebol amador. O povo abastardava o seu nome e tratava-o por Tesoriere. A imprensa foi atrás da corruptela e começou a escrever Tesorieri. Para ele pouco importava. Só descia das nuvens nas quais se perdia en pensamentos íntimos quando um grito o alertava para o perigo iminente e, então, voava para cobrir os cantos da sua baliza como se os seus braços fossem asas que um Deus qualquer se esqueceu de acabar.

Se viera ao mundo em Las Barracas, La Boca era o seu mundo. Conhecia todas as calles ao pormenor. Foi no Club Aurora que os dirigentes do Boca Juniors o descobriram. Armou-se confusão imediata. Muitos desprezaram-norindo: que não tinha físico nem força para ser aparador de relva, quanto mais guarda-redes. Outros fincram pé. E levram a melhor. Americo seria o keeper do Boca e chegaria à selecção argentina. Não há nada que um poeta não possa fazer.

Colocaram-lhe uma alcunha: La Gloria. No final do Argentina-Uruguai do Campeonato Sudamericano de 1924, os adversários carregaram-no em ombros: tinha realizado uma exibição tão mágica que nenhum deles resistiu a aprová-la de forma absolutamente convulsiva. Era grande como os grandes. Como José María Buruca Laforia, El Vasco, ou Carlos Tomás Wilson, o sucessor de Laforia.

Nas bancadas os hinchas berravam de satisfação: «Tenemos un arquero, que es una maravilla/ataja los penales sentado en una silla». E Americo voava de voar mesmo, segurando bolas impossíveis, e voava em pensamentos estranhos que ia rabiscando em cadernos com uma timidez inábil, inquieto e incrédulo porque muito do que escrevia parecia vindo de mão alheia.

No dia 31 de dezembro de 1927, Tesoriero decidiu pôr cobro à carreira. Na última jornada do campeonato argentino, num jogo entre o Boca e o San Lorenzo. Não encontrou um frase para dizer adeus. Mas um melancolia profunda tomou conta dele. Manteve-se nos relvados, como tratador de relva, aquela função que para alguns nem sequer servia. As saudades brotavam-lhe do peito em forma de poema que levou ao prelo: «Las canchas me hacen penar/Porque ya no puedo jugar/Entonces, mi bien, ¿a qué ir?/¿Recuerdas a un muñeco de gris?/Todos los aplausos eran para ti/Los golpes, los denuestos, para mí/Escuchemos, querida, por radio el partido/Está fría la tarde/Y más frío el olvido». 

Americo não escreveu apenas poesia mas foi também herói da poesia alheia.Como a de Ernesto Sabato, vencedor do Prémio Cervantes da Literatura, em 1984, um  adepto ferrenho do Boca: «Melancólicamente me recuerdo/sintiendo las primeras gotas de una lluvia/en la tierra reseca de/mis calles sobre los techos de zinc/’Que llueva, que llueva, la vieja está en la cueva’/hasta que los pájaros cantaban y corríamos descalzos/a largar los barquitos de papel/Tiempos de las cintas de Tom Mix y de las figuritas de colores/de Tesorieri, Mutis y Bidoglio/tiempo de las calesitas a caballo/de los manises calientes en las tardes invernales/de la locomotora chiquita y su silbato…». E o keeper/poeta, por sua vez: «Velha lua/indiscreta/tens espiado/o poeta do infortúnio/rolando como um cão/sem dono/à porta das tabernas marginais/de álcool e sonhos pequenos». E, amodorrado num acesso de spleen, Americo caiu num sono sem sonhos..