Sabemos que o Festival Internacional de Cinema de Veneza é um evento de enorme prestígio que apresenta, todos os anos, uma seleção de filmes de todo o mundo, trazendo alguns dos diretores e atores mais bem-sucedidos da atualidade ao tapete vermelho do Lido di Venezia. Hoje, além de uma cerimónia que dá a conhecer algumas das melhores produções mundiais da sétima arte, o evento é utilizado também como palco para falar sobre vários temas centrais. A 81ª edição do Festival, que terminou no sábado, por exemplo, apresentou filmes que alertaram para assuntos como a imigração, o perigo da extrema-direita, a sexualidade, o aborto, o BDSM, o holocausto e a eutanásia. Além disso, a edição esteve cheia de mensagens sobre o conflito no Médio Oriente, quase sempre de denúncia da atual política de guerra de Israel. Mas nem sempre foi assim. Aliás, muitos desconhecem a forma como este evento nasceu e, ainda hoje, pairam sombras sobre ele.
Um festival para o regime fascista
Este foi o primeiro festival de cinema a surgir no mundo, no dia 6 de agosto de 1932. De início, apenas fazia parte da Bienal de Arte de Veneza – uma das exposições de arte mais antigas do mundo, criada pela Câmara Municipal de Veneza em 19 de abril de 1893 –, que de dois em dois anos tentava reunir e dar a conhecer as diversas correntes artísticas europeias. Porém, a pintura, a escultura e a música não atraíam as massas e, por isso, o secretário geral da Bienal, o escultor Antonio Mariani, teve a ideia – considerada bastante ousada para a época –, de inserir o cinema.
O primeiro presidente foi o Conde Giuseppe Volpi di Misurata, ex-ministro das Finanças do ditador fascista Benito Mussolini. Este ficou conhecido por desenvolver utilitários que trouxeram eletricidade para Veneza e para os Balcãs por volta de 1903. De acordo com a publicação alemã Deutsche Welle (DW), o seu objetivo era «apresentar o festival como um produto do fascismo e enfatizar o poder cultural inovador da experimentação». «Como um espetáculo com participação de Hollywood e público internacional, os festivais de cinema emprestaram ao regime uma aura de glamour, modernidade e estilo», escreveu a especialista em cinema Marla Stone.
O Festival teve, por isso, um período dominado por fascistas e nazis, desde o seu início até 1942, com um prémio especial com o nome do próprio Ditador Benito Mussolini, a ‘Coppa Mussolini’. O ministro da propaganda nazi Joseph Goebbels dominou o festival a partir de 1937. Durante a Segunda Guerra Mundial, somente eram exibidos filmes de países simpatizantes do ‘Eixo’. A cineasta nazi Leni Riefenstahl, por exemplo, foi muito prestigiada no evento durante esse período.
As primeiras edições
Segundo a página oficial do evento, a primeira edição do festival foi realizada no terraço do Hotel Excelsior no Lido de Veneza e, embora naquela época não fosse um evento competitivo, incluiu os principais filmes que se tornaram clássicos da história do cinema: It Happened One Night de Frank Capra, Grand Hotel de Edmund Goulding, The Champ de King Vidor, Frankenstein de James Whale, Zemlja de Aleksandr Dovzenko, Gli uomini, che mascalzoni! de Mario Camerini e A nous la liberté de René Clair. A lista de realizadores incluía nomes importantes como: Raoul Walsh, Ernst Lubitsch, Nikolaj Ekk, Howard Hawks, George Fitzmaurice, Maurice Tourner e Anatol Litvak. Já as principais estrelas do momento iam desde Greta Garbo a Clark Gable, de Fredric March a Wallace Beery, de Norma Shearer a James Cagney, de Ronald Colman a Loretta Young, de John Barrymore a Joan Crawford e Vittorio De Sica. Em 1932, a cerimónia atraiu 25 mil espectadores.
O primeiro filme a ser exibido na história do festival foi Dr. Jekyll and Mr. Hyde, de Rouben Mamoulian, às 21h15. Segundo um relatório da La Gazzetta di Venezia, a exibição do filme foi seguida por um grande baile no Hotel Excelsior e «idas e vindas coloridas dos trajes mais requintados». Não houve prémios oficiais. No entanto, foi realizado um referendo do público: o melhor realizador foi o soviético Nikolaj Ekk, com o filme policial Putevka V Zizn. Enquanto o melhor filme foi a longa metragem de comédia A nous la liberté, de René Clair.
Escreve a página do festival que a segunda cerimónia foi realizada de 1 a 20 de agosto de 1934 e, pela primeira vez, incluiu uma competição. 19 países participaram com mais de 300 jornalistas credenciados. A ‘Coppa Mussolini’ foi introduzida para melhor filme estrangeiro e melhor filme italiano. No entanto, não havia um júri verdadeiro. Os prémios foram atribuídos pelo Presidente da Bienal, após ouvir as opiniões de «especialistas», do público e do Instituto Nacional de Cinema Educacional. Outros prémios entregues nesse ano foram as ‘Grandes Medalhas de Ouro da Associação Nacional Fascista para Entretenimento’ para o melhor ator e atriz.
No ano seguinte, o Festival tornou-se um evento anual. Isso foi visto como um sinal claro do seu sucesso internacional. Houve um aumento no número de filmes e países participantes, e o prémio dos atores foi renomeado ‘Coppa Volpi’ – em homenagem ao fundador do evento. Em 1936, um júri internacional foi nomeado pela primeira vez e, em 1937, o novo Palazzo del Cinema, projetado pelo arquiteto Luigi Quagliata, foi inaugurado. Com exceção dos anos de 1940 a 1948, o festival tem sido realizado no local. E o evento foi-se expandindo, quer em número de países que participavam, quer no número de filmes aceites.
De acordo com a DW, «o apogeu supostamente cosmopolita não sobreviveu à eclosão da guerra»: a partir de 1938, os prémios de melhor filme estrangeiro foram apenas para produções da Alemanha nazi. O festival tornou-se apenas «um palco de propaganda». O notório filme de propaganda antissemita Jud Süss, de Veit Harlan, estreou no festival em 1940, e foi Joseph Goebbels, ministro da Propaganda do regime nazi, que abriu o evento. O filme ajudou a criar o clima de guerra e repressão desejado pelos membros do Partido Nazi. Por causa da guerra, poucos países participaram no festival nos dois anos seguintes. Em 1942 o evento acabou por ser anulado, regressando em 1946, com muitas mudanças.
Os prémios e a 81º edição
A premiação, como hoje a conhecemos, surgiu neste ano. O Leão de Ouro é o prémio dado ao melhor filme do festival, enquanto o Leão de Prata é destinado ao melhor realizador. Há ainda o Grande Prémio do Júri para o filme escolhido e o prémio ‘Coppa Volpi’, para as categorias de atores e atrizes, além do Prémio Orsella para o melhor argumento e contribuição técnica. Também foram criados o Prémio Especial do Júri ao filme destaque, o prémio Marcello Mastroianni para Melhor Jovem Intérprete e Leões de Ouro Especiais com prémios honorários.
Este ano, o festival foi marcado por vários momentos importantes. A primeira longa-metragem em língua inglesa de Pedro Almodóvar, The Room Next Door, protagonizada por Tilda Swinton e Julianne Moore, ganhou o Leão de Ouro de Melhor Filme. O realizador de 74 anos, juntamente com as atrizes, receberam uma calorosa receção do público na estreia, com uma ovação de 18 minutos e 36 segundos. O cineasta falou abertamente sobre a eutanásia e a dignidade no fim da vida, que são os temas centrais do filme, emocionando os presentes. O filme Joker: Folie à Deux, de Todd Phillips, protagonizado por Joaquin Phoenix e Lady Gaga, que também foi exibido e concorria ao Leão de Ouro, foi aplaudido durante 11 minutos após a sessão.
Duas das maiores estrelas do evento foram seguramente Brad Pitt e George Clooney que proporcionaram aos presentes e ao público, momentos hilariantes desde a sua chegada de barco. A dupla brincou, dançou e, claro, agradeceu. O filme Wolfs, do realizador Jon Watts, que estreou em Veneza, mas que não fazia parte da competição, recebeu quase 5 minutos de ovação. Enquanto isso, os protagonistas dançaram nos seus lugares como forma de agradecimento.
De Angelina Jolie a Lady Gaga
Devido ao conturbado divórcio com Brad Pitt, Angelina Jolie também esteve presente no Festival de Veneza – embora num dia separado do de Pitt –, para apresentar o seu novo filme Maria, sobre a diva da ópera, uma das maiores do século XX, e realizado pelo realizador chileno Pablo Larraín que já contou a história da Princesa Diana e de Jackie Kennedy. A atriz teve direito a uma ovação de quase 9 minutos e ficou visivelmente emocionada, não conseguindo conter as lágrimas.
Vermiglio, da italiana Maura Delpero, ganhou o Grande Prémio do Júri, o Leão de Prata. Este é um filme sobre a chegada a uma remota cidade italiana de um desertor durante o período final da Segunda Guerra Mundial. Já Brady Corbet arrebatou o galardão de Melhor Realização por The Brutalist que percorre trinta anos da vida de László Tóth, um sobrevivente do Holocausto, interpretado por Adrien Brody. O drama georgiano April, de Déa Kulumbegashvili, sobre o aborto – que foi proibido no país –, ganhou o Prémio Especial do Júri. Nicole Kidman ganhou o troféu de Melhor Atriz por Babygirl, um thriller erótico de Halina Reijn que conta a história de uma empresária bem-sucedida que coloca a sua família e carreira em risco em nome de um caso sadomasoquista com seu estagiário mais novo. A atriz foi aplaudida durante quase 7 minutos. No entanto, não estava presente. Kidman revelou que recebeu a notícia da morte da sua mãe depois de chegar a Itália. «Ao chegar a Veneza, soube da morte de minha mãe, Janelle Kidman. Estou chocada e preciso de me juntar à minha família. Este prémio é para ela», leu, emocionada, a diretora do filme, Halina Reijn. «A colisão entre a vida e a arte é de partir o coração», escreveu ainda a artista. «E o meu coração está partido», concluiu.
O ator Vincent Lindon arrebatou o prémio de Melhor Ator por Jouer avec le Feu das irmãs Delphine e Muriel Coulin. O ator interpreta o pai de dois filhos, com o mais velho a aproximar-se de forma preocupante da extrema direita e protagonizou um momento muito especial ao agradecer repetidamente ao júri, presidido por Isabelle Huppert. Os brasileiros Murilo Hauser e Heitor Lorega ganharam o prémio de Melhor Argumento por Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, que retrata o desaparecimento de Rubens Paiva durante a ditadura militar e, Paul Kircher, recebeu o prémio Marcello Mastroianni para Melhor Jovem Intérprete, pelo filme francês Leurs Enfants Après Eux, dos irmãos gémeos Ludovic Boukherma e Zoran Boukherma. A atriz Sigourney Weaver e o realizador Peter Weir ganharam o Leão de Ouro de carreira.
Além da ficção presente nas longas-metragens apresentadas, a realidade também teve lugar ao longo da cerimónia. Aliás, no tapete vermelho, os admiradores das estrelas de Hollywood, tiveram direito a várias novidades. Durante a 81.ª edição do Festival de Cinema de Veneza, o galã Brad Pitt, por exemplo, apresentou a sua nova namorada, Ines de Ramon. A relação começou em 2022 pouco depois da designer de joias se ter divorciado do também ator Paul Wesley.
Tal como o ator norte-americano, a atriz e cantora Lady Gaga também aproveitou a ocasião para se estrear no tapete vermelho com o seu noivo, Michael Polansky. Com um ar muito cúmplice, os dois posaram para os fotógrafos com looks combinados – ela apostou num estilo dramático com um vestido longo preto com saia rodada e decote profundo. No cabelo, um grande chapéu que tapava os olhos num tecido de renda. Ele escolheu um fato básico. O casal está junto desde 2019.
Como vemos, em quase 100 anos, muito mudou no Festival de Cinema de Veneza e, ainda bem. Se antes os filmes eram escolhidos a dedo, só passando aquilo que o regime da altura desejava, hoje são inúmeros os temas abordados com liberdade no evento. Afinal, a arte é isso mesmo.