Nem sempre o sangue perde a cor e se apaga tão depressa, e às vezes é precisamente a duração dessas manchas que acaba por obrigar a constantes revisões, a fazer que o futuro se sinta incomodado, de tal modo que a única garantia que têm os mais frágeis é a de que nenhum momento significativo na vida de um país ficará simplesmente arquivado. Alberto Fujimori é um excelente exemplo da estranha moralidade do tempo. Ele foi o primeiro ex-chefe de Estado a ser julgado e condenado no seu próprio país por violações dos direitos humanos, tendo passado 16 anos na prisão antes de lhe ser concedido um indulto, em dezembro passado, por motivos humanitários. Tendo liderado o Peru ao longo de uma década (1990-2000), conseguiu tornar-se uma espécie de líder popular depois de, nos primeiros anos, ter regenerado a economia do país, e mostrou-se implacável na hora de aplacar duas insurreições violentas, pondo fim à ameaça do movimento dos guerrilheiros maoistas do Sendero Luminoso. Contudo, depois de uns primeiros anos auspiciosos, deixou que a sua presidência se desgraçasse revelando os habituais excessos autocráticos, e Fujimori acabou por ser forçado a sair devido a um escândalo de corrupção, vindo mais tarde a ser condenado a 25 anos de prisão por violações dos direitos humanos, incluindo dois massacres de civis cometidos por um esquadrão do Exército durante o período das lutas contra os maoistas. O antigo presidente peruano morreu em Lima, na madrugada de quarta-feira, aos 86 anos. Alberto sofria de arritmia e outras doenças, tendo morrido de cancro. O anúncio foi feito pela filha mais velha, Keiko Fujimori, num post no X. Foi ela que acolheu o pai depois deste ser indultado.
Filho de imigrantes japoneses, Fujimori não passava de um obscuro engenheiro agrónomo sem qualquer experiência política, mas provou um instinto e uma sagacidade espantosas, conseguindo cativar o eleitorado com a sua candidatura à presidência em 1990, passando a campanha a dirigir-se às pessoas montado num trator. Quando entrou na corrida, nem tinha um partido político a apoiá-lo. Era um simples professor de matemática, com um ar estudioso, que a único elemento de relevo com que contava no seu currículo era ter presidido à sua alma mater e à Associação Nacional de Presidentes de Faculdades do Peru. Tinha também apresentado um programa de televisão no final dos anos 80 chamado Concertando, que se traduz aproximadamente por ‘resolver as coisas’. Mas conseguiu chegar ao poder e atrair a confiança popular após uma crise económica conhecida no Peru como a ‘década perdida’, tendo a produção registado uma contração de cerca de um quarto entre 1987 e 1990, enquanto a hiperinflação levou o país a abandonar a sua moeda e a introduzir o nuevo sol, que o Peru ainda utiliza. Conhecia bem as dificuldades que o país enfrentava e apanhou o establishment desprevenido ao ficar em segundo lugar, beneficiando de uma primeira volta muita concorrida, e batendo o favorito da elite, o romancista Mario Vargas Llosa, na segunda volta.
No cargo, Fujimori não demorou a pôr cobro à inflação, ao despesismo e à má gestão. Conseguiu reanimar a economia e diminuir o desemprego, elevando o nível de vida, e isto enquanto deixou claro desde cedo que não iria dar qualquer margem para que o crime organizado e o tráfico de droga ditassem as leis nas ruas, e sobretudo entre os bairros mais desfavorecidos. Mas a sua linha ultraconservadora não demorou muito a dar sinais de intolerância face aos controlos democráticos, e manifestou em diversas ocasiões o seu desprezo tanto pelas leis como pelas instituições peruanas. Foi ao ponto de determinar o encerramento temporário do congresso, governando por decreto durante meses. Naqueles primeiros anos, Fujimori exerceu o poder como quis, gozando de carta branca numa altura em que o país vivia sob a ameaça e os constantes atentados do Sendero Luminoso e do Movimento Revolucionário Túpac Amaru. Revelou também possuir alguma dessa sabedoria tornada necessária pela brutalidade e os métodos dos seus inimigos, e deixou claro que não hesitaria em servir-se da mesma gramática e lógica, mas acabou por suscitar a denúncia de várias organizações humanitárias, gerando-se um clamar a nível internacional que permitiu que os seus opositores internos se mobilizassem no sentido de o afastar da cena política.
A verdade é que Fujimori ficou a dever a sua queda à cultura de ganância que havia gerado tanta descrença entre a população, persistindo a ideia de que aquele era um país ingovernável. Veio a ser derrubado em 2000, depois de um canal de televisão ter divulgado uma cassete de vídeo que mostrava o seu chefe dos serviços secretos a tentar subornar um congressista. Perante os crescentes protestos, Fujimori fugiu para o Japão, onde apresentou a sua demissão por fax a partir de um hotel em Tóquio. Após cinco anos de exílio, viajou para o Chile de forma a congeminar um regresso político. Mas os seus inimigos aprenderam a não subestimá-lo, e conseguiram a sua extradição para o Peru. Em 2009, viu-se condenado a 25 anos de prisão pelo já aludido massacre levado a cabo por uma unidade militar no início da sua presidência, e que vitimou 25 pessoas.
Contudo, mesmo atrás das grades, o fujimorismo não morreu, e à medida que o descontentamento crescia e a economia voltava a afundar-se, voltou a ter do seu lado as bases populares. E foi a filha quem herdou esse apoio, sendo que Keiko tinha já assumido as funções de primeira-dama depois de os pais se terem desentendido publicamente. Depois de falhar por pouco a eleição nas presidenciais em 2011 e 2016, enquanto o seu pai se tornava um mártir na prisão, ela liderava a oposição.
O estado de saúde do antigo presidente deteriorou-se rapidamente na prisão, e este pediu muitas vezes que lhe fossem dadas condições de receber os cuidados de saúde adequados fora dali. A 24 de dezembro de 2017, o presidente Pedro Pablo Kuczynski concedeu, por fim, o indulto por razões humanitárias, mas ficou claro que foi o preço a pagar pela sua sobrevivência política, uma vez que três dias antes foi a ajuda inesperada dos apoiantes de Fujimori no congresso que lhe permitiu ultrapassar uma moção de destituição. O perdão veio a desencadear uma nova onda de protestos nas ruas e, um ano depois, foi anulado pelo Supremo Tribunal do Peru. Fujimori foi recambiado de volta para a prisão a 23 de janeiro de 2019. Mas em dezembro passado, o Supremo Tribunal do Peru ordenou a libertação de Fujimori, desafiando uma ordem de um tribunal internacional que dizia que ele deveria permanecer na prisão. Fujimori deixou a prisão no dia seguinte. Em julho, a sua filha afirmou que ele fazia tenções de candidatar-se à Presidência do Peru pela quarta vez em 2026. Agora parece mais difícil, mas na América do Sul é só uma questão de tempo até algum fantasma provar que nem a morte determina o fim das aspirações dos seus mais terríficos personagens.