Relatório Draghi. O futuro da competitividade europeia

O ex-presidente do BCE aborda a desburocratização, a emissão de dívida pública, a criação de um mercado de capitais, a reforma do sistema de pensões, o preocupante gap de inovação, o problema com a China, o foco na indústria e o processo de decisão na União Europeia

Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu e ex-primeiro-ministro italiano, apresentou o seu tão aguardado relatório sobre a economia europeia no início desta semana. O documento, intitulado ‘O futuro da competitividade europeia’, desdobra-se em duas partes – a primeira, mais curta, apresenta uma estratégia geral para a competitividade da União Europeia; a segunda, que se estende por 328 páginas, oferece uma análise profunda e aporta recomendações de incontornável importância – e representa um sinal de alerta para uma mudança de rumo na EU. Mantendo a estratégia (ou a falta de) atual, a Europa caminha para a estagnação e verá a sua competitividade arrasada no cenário internacional. Urge por isso arregaçar as mangas, e o documento poderá ser o primeiro passo, servindo de guião para a linha de ação do novo mandato de Ursula Von der Leyen ao leme da Comissão Europeia. 

Dos vinte e um temas abordados ao longo de quatrocentas páginas, sobressaem inevitavelmente a desburocratização, a emissão de dívida pública – algo que já foi feito durante o período da crise pandémica –, a criação de um mercado de capitais, a reforma do sistema de pensões, o preocupante gap de inovação, o problema com a China, o foco na indústria e, talvez um dos mais importantes, o processo de decisão na UE – que já se demonstrou, mais que uma vez, falível. 

A desburocratização

Mario Draghi insistiu no relatório, e na apresentação do mesmo, que um dos principais objetivos da próxima Comissão deverá passar pela desburocratização do sistema. «A União Europeia carece de foco. Proclamámos que a inovação estava no centro da nossa ação e depois, basicamente, fizemos tudo o que pudemos para a manter a um nível baixo. Barreiras de regulação limitam o crescimento de diversas formas», sublinha o ex-presidente do BCE, acrescentando ainda que «A posição regulamentar da União Europeia face às empresas de tecnologia dificulta a inovação».

Draghi apresenta assim uma ode à desburocratização, reforçando a ideia de que é necessário menos intervenção central no mercado porque, de outra forma, asfixia-se as pequenas e médias empresas europeias, que serão forçadas a sair do velho continente.

O ex-líder do executivo italiano explica ainda que as regras preventivas que vigoram são uma das principais causas do atraso europeu. «Estima-se que a Regulação Geral de Proteção de Dados tenha reduzido os lucros de pequenas empresas de tecnologia em mais de 15%. Estamos a matar as nossas pequenas empresas. Com esta regulação estamo-nos a autoderrotar». Declarações fortes, mas assertivas, de um nome cujo peso e influência na UE é notável e que vem, de certo modo, contra a corrente que nos tem arrastado – através de taxas, burocracia e falta de planeamento estratégico – para o caminho da estagnação.

O gap na inovação

Logo na página 19, Draghi aborda a importante questão do gap na inovação, alertando para os desafios que a Europa enfrenta no setor da produtividade e apresentando soluções que procuram mitigar a diferença para os outros competidores. «A Europa precisa de uma produtividade mais acelerada de modo a manter taxas sustentáveis de crescimento face a fatores demográficos adversos», pode ler-se a negrito no início do capítulo supramencionado.

Mario Draghi procede a explicar que a recuperação do atraso no pós-II Guerra Mundial foi possível através de fatores que estão atualmente em declínio: a produtividade e o aumento da população.

Utilizando um gráfico como suporte, o economista italiano aponta para o facto que «a produtividade do trabalho na União Europeia conseguiu convergir com a dos EUA de um 22% a um 95% entre 1945 e 1995, mas o crescimento da produtividade do trabalho desacelerou substancialmente mais do que nos EUA e caiu para valores abaixo dos 80% do nível dos EUA». Draghi atribuiu o aumento do gap de produtividade ao setor da tecnologia digital, prevendo que a Europa poderá ficar ainda mais afastada.

Porém, ainda há razões para otimismo neste âmbito: «A Europa ainda tem a oportunidade de capitalizar em vagas futuras de inovação digital». Mas, para tal acontecer, é urgente delinear uma estratégia séria, coerente e de fácil aplicabilidade.

O processo de decisão

«O problema da Europa não é a falta de ideias ou de ambição. Temos muitos investigadores e empresários talentosos que registam patentes. Mas a inovação é bloqueada na fase seguinte: estamos a falhar na transformação da inovação em comercialização, e as empresas inovadoras que pretendem expandir-se na Europa são prejudicadas em todas as fases por regulamentos incoerentes e restritivos», o que resulta na obtenção de capitais junto de investidores de capitais de risco americanos. Draghi apresenta ainda a preocupante percentagem (30%) de ‘unicórnios’ fundados na Europa que se veem forçados a realocar as suas sedes no exterior.

Além da insuportável carga burocrática, outro aspeto importante que bloqueia e atrasa substancialmente o progresso e o desenvolvimento da economia europeia é o lento processo de decisão. «A Europa não se coordena onde é importante, as regras de decisão da Europa não evoluíram substancialmente à medida que a União Europeia se alarga e o ambiente global que enfrentamos se torna mais hostil e complexo», afirma.

Neste âmbito é de assinalar que o processo de elaboração de políticas e aprovação de atos legislativos demora na UE, em média, dezanove meses. Sendo que cada mandato da Comissão Europeia tem a duração de cinco anos, os processos consomem um terço do mesmo.

Ainda assim, Draghi sublinha outra preocupação quando apresenta dados que demonstram uma aprovação dez vezes maior de atos legislativos na União Europeia em comparação com os Estados Unidos, mesmo com um processo lento. «Este facto faz-nos pensar: será que podemos fazer um pouco menos e ter um pouco mais de foco?». Fica evidente que o economista não se poupou nas palavras, realçando ainda que o «processo lento e desagregado de elaboração de políticas» é o culpado da incapacidade da UE para apresentar «estratégias industriais como se vê nos EUA e na China».

O italiano aponta ainda para a dificuldade em competir com a indústria de automóveis elétricos da China, fortemente subsidiada pelo Governo central, o que faz com que se perca empregos europeus no setor. Ainda assim, Draghi alerta para a armadilha do protecionismo, estando assim a enviar uma mensagem para que se aliviem as extensas regulações aplicadas aos produtores europeus de modo a torná-los competitivos.

O mercado de capitais e as pensões

Além das propostas já abordadas antes, Mario Draghi apresenta mais dois aspetos cujo impacto não poderá ser ignorado: a criação de uma União de Mercados de Capital e a generalização de sistemas de pensões privados, um tema polémico – e por isso pouco discutido –, mas de importância acrescida.

«Para desbloquear capital privado, a UE deve construir uma União de Mercados de Capital genuína, apoiada por um regime de pensões mais forte», defende o ex-líder do BCE. «A Autoridade Europeia para a Segurança e os Mercados deve passar de ser um órgão que coordena os reguladores nacionais para ser o único regulador comum para todos os mercados de ‘securities’ da UE, semelhante à Comissão de ‘securities’ e de câmbio dos EUA».

Quanto às pensões, Mario Draghi apela a uma melhor canalização das «poupanças das famílias para investimentos produtivos. A forma mais fácil e mais eficaz de o fazer é através de produtos de poupança a longo prazo (pensões)». «Para aumentar o fluxo de fundos para os mercados de capitais», explica Draghi, «a União Europeia deve incentivar os pequenos investidores através da oferta de regimes de pensões do segundo pilar, replicando os exemplos de sucesso de outros Estados-membros».

O economista propõe ainda uma injeção de 800 mil milhões de euros -o dobro do que foi investido na ressaca da II Guerra Mundial: «Sem ação, teremos de comprometer o nosso bem-estar, o nosso ambiente ou a nossa liberdade».

O relatório vem com selo de emergência, num momento em que as duas maiores economias da União Europeia apresentam índices preocupantes e o cenário político está em convulsão.