Nos últimos tempos, os problemas do SNS têm estado em destaque na Comunicação Social (em especial a crise das urgências hospitalares), com a oposição responsabilizando o Governo por esta situação, e este, atribuindo a causa desses problemas aos governos anteriores.
Com base em dados factuais, na verdade, a situação deixada pela governação socialista revela um conjunto de problemas graves, os quais, de forma muito sucinta e referindo apenas aqueles que têm um impacto direto na população, se podem descrever do seguinte modo:
– Listas de espera, para cirurgias e consultas, mais elevadas em 2023, do que em 2015 (Relatório de Acesso ao SNS e Relatório do CFP – Conselho de Finanças Público, de 2023);
– número de utentes sem médico de família de 1.711.952 em 2023 quando esse número era, em 2015, de 1.044.945 (Portal do SNS);
– número de pessoas recorrendo ao setor privado, através do pagamento de seguros de saúde privados, por falta de resposta do SNS, de 2 milhões em 2015, para cerca de 3,5 milhões em 2023 (dados da ASF – Autoridade de Supervisão do Setor de Seguros), levando a que Portugal seja hoje um dos países cimeiros na União Europeia em que as famílias mais custos suportam com os cuidados de saúde;
– crises persistentes nas urgências hospitalares por falta de profissionais médicos no SNS, de forma mais aguda nas especialidades de obstetrícia, ginecologia, pediatria, como tem sido amplamente noticiado.
E toda esta degradação de resposta do SNS se verificou apesar dos recursos terem aumentado muito expressivamente: de 2015 a 2023 os orçamentos para despesas de funcionamento (salários, medicamentos, custos intermédios etc.) aumentaram de 9,5 mil milhões de euros, em 2015, para cerca de 15 mil milhões, em 2023, (acréscimo de quase 60%). Ou seja, apesar de mais recursos, verificou-se uma grande deterioração de resposta do SNS.
A magnitude dos problemas com os quais o SNS se confronta exige, a meu ver, uma reforma profunda, com uma modificação da configuração atual do sistema de saúde, não sendo suficientes, apesar de necessárias, apenas medidas de organização e gestão, como tem sido introduzidas, ao longo dos 45 anos de existência do SNS.
O SNS, no seu modelo atual, é caracterizado pelo papel único do Estado que nele desempenha todas as funções:
– A de Prestador dos cuidados de saúde (através das unidades públicas que detém – hospitais, centros de saúde etc.);
– a de Financiador dos custos do SNS (através do financiamento, por via dos impostos, no Orçamento do Estado);
– a de Empregador e ‘entidade patronal’ de todos os Recursos Humanos (todos os profissionais – médicos, enfermeiros, técnicos, assistentes, etc., são funcionários públicos);
– e a de Gestor (de todas as unidades e atividades do SNS).
Ora, nesta configuração, o SNS, desde a sua criação, nunca conseguiu garantir, de forma eficaz e sustentada, o acesso de toda a população aos cuidados de saúde, como está assegurado na Constituição, ou seja de forma gratuita (só com taxas moderadoras), geral e universal.
De facto, os problemas de acesso da população aos cuidados de saúde mantiveram-se sempre ao longo da existência do SNS: sempre existiram listas de espera para cirurgias e consultas, com maior ou menor expressão; nunca se conseguiu a cobertura da totalidade da população, por médicos de família; as crises das urgências hospitalares estiveram sempre presentes, com menores ou maiores níveis de gravidade; e a resposta dos cuidados primários (centros de saúde) fundamentais em qualquer sistema de saúde, foi sempre deficiente, agravando os problemas de acesso e contribuindo fortemente para as crises das urgências hospitalares.
Esta situação sempre penalizou, em especial, a população mais carenciada e desprotegida, que é aquela que é atingida, em pleno, por estes problemas de acesso, pois não tem meios financeiros para os ultrapassar mediante o recurso ao setor privado da saúde.
De lembrar que a incapacidade de resposta do SNS levou uma grande parte da população, aquela que consegue ter recursos financeiros para tal, a recorrer de forma sistemática, pagando, ao setor privado da saúde.
Pelos dados da ASF – Autoridade de Supervisão do Setor de Seguros, que atrás referi, existem 3,5 milhões de pessoas com seguros privados de saúde o que, adicionado a cerca de 1,5 milhões de funcionários públicos (incluindo forças de segurança) e suas famílias, que descontam para a ADSE e outros subsistemas públicos, totaliza cerca de 5 milhões de portugueses (cerca de 50% da população) que recorrem ao setor privado.
A adicionar a estes problemas de acesso, verifica-se (e sempre se verificou) também, uma elevada ineficiência e desperdício, o que conduz a que o SNS tenha custos que são muito superiores aqueles que seriam necessários para prestar os mesmos cuidados de saúde à população. É generalizadamente reconhecido que esta ineficiência seja, pelo menos, da ordem dos 20 a 25% (numa ótica conservadora) o que significa, tomando por base as despesas do SNS em 2023, que atingiram cerca de 15 mil milhões de euros (mM) que existirão custos de ineficiência de cerca de 3mM (20%x15mM).
Esta incapacidade permanente, estrutural, do SNS de responder de forma eficaz, atempada e sustentada, e com custos de eficiência, é, na realidade, o problema de fundo a solucionar.
Por vezes, surge na Comunicação Social o relato de problemas cometidos em atos clínicos praticados. É evidente que erros sempre existirão, em todas as profissões, mas a evidência demonstra a qualidade dos profissionais de saúde do SNS. Em Portugal, em rigor, não temos um problema de qualidade na prestação de cuidados de saúde, mas sim um problema grave de acesso, com custos muito elevados de ineficiência, o que nunca foi resolvido ao longo da existência do SNS.
É óbvio, e tomando apenas por referência os sistemas de saúde na União Europeia, que existem outros países que se debatem também com problemas de acesso e de ineficiência. Podemos até lembrar que Portugal no último ranking dos sistemas de saúde europeus, surge em 13.º lugar.
Contudo, este posicionamento não afasta e resolve, por si só, os problemas e as consequências para a população que o SNS apresenta e que continuarão a verificar-se, no futuro, se não forem tomadas medidas estruturais para os combater.
Sendo o Estado, por um lado, o único ator no SNS, nele desempenhando todas as funções, como atrás mencionei, e por outro lado, tendo presente, ao longo do tempo, a sua incapacidade de resolver os problemas de acesso da população aos cuidados de saúde, é lógico e inevitável que se questione a sua ação e se procure encontrar respostas, de forma estrutural, para ultrapassar e solucionar os problemas do SNS.
Quanto à ação do Estado, ao longo do tempo, podemos apontar como ‘pano de fundo’ a sua incapacidade e fracasso na gestão dos Recursos Humanos, ao fim e ao cabo, o fator decisivo para o sucesso de qualquer organização. A gestão pública de RH é de natureza burocrática, sem reconhecimento do desempenho individual, levando ao “nivelamento por baixo” das competências, ‘atravessada’ por motivações politicas na nomeação e gestão dos cargos de topo e sujeita a fortes pressões e reivindicações sindicais, muitas vezes por razões politicas.
A gestão das unidades prestadoras de cuidados do SNS, pelo Estado, é assim feita num enquadramento contrário à existência de uma gestão por meritocracia, com falta de avaliação, efetiva e consequente do desempenho individual, ligada a incentivos e penalizações, o que conduz à falta de envolvimento e desmotivação dos profissionais de saúde e a custos muito elevados de ineficiência.
Note-se que este é um problema de gestão do Estado e não de uma suposta qualidade média inferior dos seus RH (funcionários públicos), face, por exemplo, aos empregados no setor privado. A prova clara, disso, foi demonstrada na gestão privada dos hospitais do Estado em PPP – Parcerias Público-Privadas (PPP). Estes hospitais geridos em PPP revelaram excelentes resultados, em termos de melhor acesso pela população e com uma elevada eficiência quanto a custos, gerando centenas de milhões de euros de poupanças para o Estado (para os contribuintes) o que foi comprovado por entidades oficiais, credíveis, como o Tribunal de Contas e a Entidade Reguladora da Saúde. Ora estes resultados foram obtidos pelos RH do Estado (médicos, enfermeiros etc.) que pertenciam aos quadros dos hospitais em PPP (por regra, as entidades gestoras privadas apenas levaram para as PPP reduzidas equipas de gestão)
O financiamento, outra das funções que o Estado executa no SNS, nunca foi um fator de eficiência. Ou seja, crescem os recursos financeiros postos à disposição do SNS (pagos pelos impostos dos contribuintes) mas não existe uma ligação entre esse crescimento e os resultados para a população. Isto verifica-se ao nível das unidades prestadoras de cuidados geridas pelo Estado e também ao nível global do SNS bastando recordar, para fundamentar esta afirmação, o que atrás referi: entre 2015 e 2023 os custos do SNS aumentaram cerca de 5,5 mil milhões de euros (cerca de 60%) com piores resultados para a população.
Toda esta situação exige, a meu ver, uma reforma estrutural, com a modificação do papel do Estado e uma nova configuração do sistema de saúde em Portugal, sem a qual continuaremos, no futuro, a enfrentar os mesmos problemas, o que será abordado no próximo artigo.
Gestor