Bibi vive na rua e pede ajuda a quem o denunciou

22 anos depois da revelação do escândalo da Casa Pia.

A história de Bibi, o ex-motorista  da Casa Pia. Violou crianças na Casa Pia durante anos, com a complacência – ou mesmo a cumplicidade – de gente importante. Condenado, cumpriu uma pesada pena de prisão, donde saiu para viver na rua… e pedir ajuda aos que o tinham denunciado. Vinte e dois anos depois, falámos com ele. Revela a mesma natureza amoral, a mesma aversão à verdade e não parece arrependido de nada.

A luz desliza rápida, como se procurasse um esconderijo na cúpula da basílica. O vento frio, no final da tarde de agosto, parece acompanhar o ânimo de três pessoas que, em direções diferentes, se aproximam da escadaria do edifício. Todas têm a impressão de que lhes foi montada uma cilada. E não estão longe disso. De súbito, os olhares convergem como setas. Carlos Silvino, mais conhecido por ‘Bibi’, o homem que durante quase quatro décadas abusou de crianças da Casa Pia, avança, hesitante.

Está diferente. O tempo diminuiu-lhe o corpo e vem disfarçado. Um boné de pala preta encobre-lhe o cabelo, agora da cor do aço. Mostra-se inquieto, receoso. Olha para os outros dois, que caminham ao seu encontro. Depois abre a passada e, movido por uma secreta lógica, opta por se dirigir a Pedro Namora, o antigo aluno da instituição do Estado que o denunciou, há precisamente 22 anos – ignorando a jornalista que, à época, desencadeou a investigação que o levou à prisão.

A vida da cidade desaparecera. Os lisboetas estão a banhos e as poucas almas que entram e saem do jardim da Estrela ignoram o trio. No antigo motorista da Casa Pia sobrevive, porém, a ansiedade dos fugitivos. Amputou a identidade que lhe completa a máscara: «Agradecia que me tratassem por Carlos Silva, é assim que me apresento agora».

A tensão eclipsa-se em poucos minutos. Afinal, fora ele quem marcara o insólito encontro. Eis a questão: a sorte, que nunca lhe fora favorável, virara-lhe totalmente as costas. Depois de ter cumprido 12 anos de pena efetiva por centenas de crimes de abuso sexual de crianças, ao sair em liberdade condicional, há dois anos, encontrara apenas a rua como abrigo. Movido por uma variante da síndrome da vítima agradecida, procura ajuda nas pessoas menos prováveis: «Tenho direito à minha privacidade. Preciso de uma casa. Roubaram-me tudo», atira, de olhar esgazeado, enquanto o corpo lhe treme de cima abaixo.

Do Alentejo para Lisboa, ao colo da mãe

A noite cai, mansinha. Dirigimo-nos para um restaurante à beira rio. Embalado pelo bater das ondas que o vento arrasta, Carlos Silvino folheia memórias. Os homens sempre procuraram um teto. Ele sempre andou em bolandas. E a primeira casa que recorda começou por ser a sua primeira prisão: «Entrei na Casa Pia com quatro anos e meio. Aquilo para mim era um manicómio. Cheguei a fugir quatro vezes com outros colegas. Íamos descalços. Ficávamos no Cais do Sodré ou em Santos. Dormíamos na rua. Com a semanada, quatro escudos, comprávamos graxa e ganhávamos algum a engraxar sapatos. Mas os guardas-noturnos apanhavam-nos e mandavam-nos de volta para a Casa Pia. Depois levava muita porrada do chefe de disciplina».

Um homem tende sempre a abrilhantar a sua biografia. O tom da voz de Carlos Silvino não acompanha o trapézio da desgraça para a alegria.

Nascido no Cercal, em agosto de 1956, era mais um numa família que, como tantas outras alentejanas, não via qualquer perspetiva de futuro: nem para melhor nem para pior, se tal ainda fosse possível.

A mãe, Madalena da Encarnação Silva Raposo, não tinha amparo nem nome de pai para dar à criança. Estava com 25 anos e no Alentejo esgotara a sua sorte. Para piorar as coisas, a sua progenitora amigara-se com o álcool. Sem nada que a prendesse ali, Madalena decide partir com os dois filhos de colo, para servir na capital. Aceitam-na como criada em casa de um rico comerciante espanhol, com a condição de se livrar das crianças.

Assim Bibi entra na Casa Pia, que nos anos 60 já se tornara um albergue internacional de pedófilos.

O ‘benfeitor’ americano

O provedor, Francisco Rodrigues, abrira as portas da Casa Pia a um tal Ken Rogers, a troco de benfeitorias para a instituição. Este homem tinha, contudo, um historial no mínimo curioso. Apresentava-se como fazendo parte do Governo americano, viajava sistematicamente para a Jugoslávia, tinha um rancho na Colômbia, onde chegariam a passar férias menores da Casa Pia. O impensável em pleno Estado Novo acontecia. A PIDE esquecia o papão do comunismo e carimbava os vistos dos meninos, que chegaram a viajar para países do Leste. Depois de os miúdos regressarem a Lisboa, o ‘benemérito’ Rogers mantinha com eles correspondência – facto que acabaria por revelar os seus vícios.

As ramificações de Ken Rogers eram extensas. Mantinha conversas com o genro do ditador espanhol Francisco Franco, Cristobal Martinez Bordiu, dono da Clinica La Paz, em Madrid. Foram tempos de terríveis maquinações. Um dia, o milionário americano sugeriu ao provedor que o deixasse levar um aluno com graves problemas de coração. Seria operado por Bordiu na dita clínica. O rapaz foi – mas voltou dentro de um caixão, sem certidão de óbito.

Rogers dizia-se também secretário-geral de uma organização chamada AMACO, de pretensa ajuda médica às crianças do Ultramar. «Os objetivos pelos quais esta organização de caridade sem fins lucrativos foi criada são de ajuda e cuidado a órfãos sem-abrigo, negligenciados ou crianças abusadas de qualquer idade credo ou religião» – lia-se na revista que a organização editava.

Ora, esta revista relataria assim, mais tarde, aquela intervenção cirúrgica ao casapiano: «O nosso próprio ex-presidente da AMACO viajou para Madrid e juntou-se à equipa do Dr. Bordiu e foi conseguida uma bem-sucedida substituição da válvula da aorta».

Apesar das suspeitas e avisos feitos ao provedor, o milionário continuou a fazer uso da Casa Pia como se fosse a sua casa. Foi nesta época que Carlos Silvino, segundo várias testemunhas, foi abusado pelo grupo de amigos que acompanhavam o americano.

Queixa chega ao ministro Rebelo de Sousa

Junto ao rio, abrigados do vento, o calor de agosto reaparece. O ex-motorista da Casa Pia transpira, o boné de pala preta incomoda-o mais do que o passado. Retira-o, volta a colocá-lo. Está de novo sob tensão. Contra todas as provas, quer ser o único narrador da sua história. Vem preparado: «Lembro-me bem dos americanos. Também havia uns espanhóis que iam lá buscar miúdos. Dois rapazes da minha camarata ainda foram a uma festa de forrobodó no Ritz com eles. Mas eu não fui abusado pelos americanos!». Conta as suas histórias numa inspiração de momento. Por vezes, a sua memória é prodigiosa. «Fui abusado quando tinha quatro anos e meio. À noite, tiraram-me da camarata e levaram-me às cavalitas para uma sala da antiga secretaria».

Em 1972, as queixas continuavam e, um dia – coisa extraordinária –, chegaram ao ministro da Saúde e Assistência, Baltazar Rebelo de Sousa. Este abre um inquérito. Alunos e precetores são ouvidos no Tribunal de Família e Menores, e nos registos oficiais ficam assentes relatos espantosos: os meninos, depois de muito champanhe, acordavam nas alcovas dos americanos.

Enquanto decorre o expediente judicial, Ken Rogers escreve ao provedor Francisco Rodrigues: «Tenho tido notícias de que tem havido interrogatórios, investigações ou alguma coisa do género envolvendo-me. Tudo me leva a crer que qualquer ato meu agora é suspeito… Fiquei surpreendido de saber que aquele rapaz que você originalmente me falou para visitar os EUA agora afirma que a única razão por que não veio foi porque, enquanto eu e você falámos com ele, ele não me permitiu que lhe desse um beijo». Pelos vistos, Rogers tentara beijar o rapaz e este não permitira, entendendo estar aí o motivo para não o terem levado aos Estados Unidos. Mas o americano rejeita essa presunção: «Meu Deus! Como é que o pobre miúdo pode acreditar nisso?». E faz um pedido ao provedor: «Se você não tem conhecimento do que se está a passar agora, eu sugeria-lhe que tomasse conhecimento. Isto deixou-me completamente sem vontade de voltar a Lisboa. Talvez fosse melhor dar-me o nome de um excelente advogado de forma a que me possa corresponder sobre esse assunto».

Caso ‘abafado’

O provedor está disposto a fazer concessões. Em correspondência confidencial com o ministro Rebelo de Sousa, Francisco Rodrigues mostra a sua fineza de espírito. Tinham falado em tempos na hipótese de a AMACO entrar com capital na ampliação do Instituto Jacob Rodrigues, o lar dos surdos-mudos, cuja execução fora suspensa por falta de verbas. E a solução pode estar aí. O provedor contacta o americano, que responde: «Há um projeto pronto, pelo que sei, para ajudar o Holy Name Orfange for Girls em Osaka, mas se me escrever a dizer quais são os seus planos e necessidades… tenho a certeza de que os seus muito amigos da AMACO vão dar-lhe preferência».

Tudo se passava às escâncaras. Em carta confidencial ao ministro, o provedor dá conta das artimanhas que abafarão o processo: «Tenciono responder [a Rogers] que não há que indicar nenhum advogado, visto que o inquérito não lhe diz respeito. Em relação ao segundo aspeto, o nosso parecer é que se aceite a oferta feita e se satisfaçam as condições exigidas».

Uma violação em flagrante

Por essa altura, já Silvino passara para mãos nacionais. Está com 13 anos, e é agora um aluno mais velho, o Estrela, que já trabalha em part-time na estiva, quem dele abusa. O caso era do conhecimento de toda a instituição, até porque chegaram a ser apanhados na casa de banho.

Mas Silvino regressa ao presente para, como sempre, negar. Por instantes, perde-se. Deixa-se embalar pelas vagas que o vento arrasta até às estacas que suportam o madeirame da esplanada. Por segundos, fica ausente. Com um sorriso terno, uma raridade, regressa: «Sei quem é o Estrela mas não tive nada com ele. Eu fui violado por um vigilante, por um padre, e uns senhores…» Pedro Namora, num exercício que exige muita presença de espírito, às vezes não se contém: «Porra, pá! Mas tu não assumes nada…!». Silvino lida mal com a verdade. Aliás, está ali para fugir dela. Com este passado às costas, é difícil conseguir uma casa… Sempre que se sente encurralado, há um tique antigo que o domina.

A jornalista que o investigou recorda quem há duas décadas ajudou a caracterizá-lo. O regime estava a dar os últimos suspiros e Bibi, com 17 anos, passara a monitor. Tinha como função acordar e deitar os meninos. Uma noite, os gritos de uma criança ecoaram na camarata. Silvino amarrara-o a uma cama e violara-o à frente dos colegas. O miúdo é suturado na enfermaria e Valdemar, chefe de pessoal que conhece Bibi desde pequeno, chama-o ao seu gabinete. As palavras do antigo funcionário ecoam no tempo: «Eu estive na enfermaria e ainda vi o sangue no rabinho do miúdo mas ele [Bibi] negou tudo. Era muito mentiroso. Tinha um tique: sempre que mentia piscava muito os olhos».

Uma teia de cumplicidades

A revolução de Abril chegara. Na Casa Pia, o provedor é saneado e uma comissão de gestão arruma a instituição. Valdemar é um dos elementos do coletivo, e Silvino é expulso. Mas já criara uma teia de grandes cumplicidades e, sem que ninguém perceba porquê, pouco tempo depois é readmitido. Vai somando processos disciplinares, sempre pelas mesmas razões. Há crianças que escrevem cartas a denunciá-lo, mas tudo cai em saco roto. O ex-aluno passara de vítima a abusador e angariador de menores para figuras do jet set nacional.

Nos anos 80, um caso escandaloso chega à PJ. É o célebre processo de Cascais. Dois alunos da instituição tinham desaparecido. Passam-se duas semanas sem notícias deles. Os percetores ouvem os amigos mais chegados, e o cerco a Silvino aperta-se. Este levara os miúdos a uma festa num apartamento do embaixador Jorge Ritto, na Linha do Estoril. Ali estivera também Carlos Cruz. O caso não foi a tribunal, mas partes do processo escaparam à queima e chegaram à atualidade.

Bibi confirma e nega tudo

O resto faz parte da memória coletiva mais recente. Carlos Silvino, detido em 2003, assume tudo perante os juízes. Entre as figuras que denuncia, estão nomes como Paulo Pedroso, que não foi pronunciado, Carlos Cruz, o provedor-adjunto da Casa Pia, Manuel Abrantes, Jorge Ritto, o médico Ferreira Diniz e Hugo Marçal, o seu primeiro advogado. Alunos da Casa Pia acompanham com idênticos pormenores o testemunho do abusador. Após a condenação, Silvino viria, numa entrevista, a dar o dito por não dito.

A luz de agosto transforma-se num fumo que se abate sobre a cidade. A noite cai tardia, as vagas do rio, tal como o passado, ressoam. Na explanada, a jornalista que à época despoletou o caso recorda o desfile de consequências trágicas: rostos de crianças abusadas durante gerações; documentação que prova as atrocidades cometidas; vídeos de crianças filmadas para comércio de pedófilos, alguns deles – exatamente 69 – encontrados numa busca da PJ a casa de um irmão de um dos provedores da instituição; casapianos que se suicidaram, outros que fazem parte da estatística científica das primeiras vítimas que tombaram com a entrada da sida no país.

Silvino, que fizera contrariado a viagem no tempo, apega-se ao presente como um náufrago. O seu espírito funciona às avessas. E nega tudo, mais uma vez. Até a entrevista que deu ao jornalista Carlos Tomás, que contrariava o que dissera em tribunal. A sua memória, no entanto, é bastante seletiva: «Nunca dei essa entrevista. Foi uma montagem. Não sei como fizeram isso. E o que contei no tribunal foi porque a polícia me deu umas saquetas na água. Eu suava em bica depois de beber aquilo. Ainda me lembro que era água do Vimeiro. O que disse não sei, mas nunca conheci o Cruz nem os outros!».

Pedro Namora, que continuara a conter a indignação, não resiste: «Então por que é que, nessa altura, quando te visitei, me disseste para pedir desculpa por ti aos miúdos e me pediste desculpa por aquilo que me fizeste?». Silvino precisa de uns segundos para se restabelecer. Enfraquece-se-lhe o raciocínio. Respira, ofegante: «Porque os nervos eram tantos que eu nem sabia onde é que andava».

A jornalista, apreciadora da lógica, faz-lhe uma pergunta razoável: «Sr. Carlos Silvino, já ouviu falar no soro da verdade? É a única coisa que conheço, para além da tortura, que faz com que as pessoas falem. Mas, tanto quanto sei, é para que digam a verdade, não a mentira!». O homem não é completamente destituído e, com o descaramento nos lábios, encontra nova versão: «Eu falei sob coação, foi aquele f.d.p. do Dias André [um dos elementos da PJ que investigaram o caso] quem me obrigou a falar!».

Levanta-se, nervoso. Parece-lhe inconcebível que se duvide dele. Reage como um refém. Involuntariamente, sai da clandestinidade a que se remeteu. Retira o boné. Esquece-o. Senta-se de novo. A bola volta para a jornalista, que o confronta com uma conversa entre ele e um dos abusados, gravada pela mãe deste. A reação não traz novidade: «Outra manipulação. Aquilo não é a minha voz! Nunca conheci o rapaz e a mãe dele é fufa, toda a gente sabe com quem andou metida».

‘A câmara roubou-me a casa e o recheio’

O seu telemóvel toca. Não atende. Mas não resiste a espreitar as notificações que chegam ao Facebook, e abre o seu perfil, onde posa sem óculos. Como capa, um atrativo típico para crianças: um BMW desportivo topo de gama. Um homem nestas circunstâncias devia ter mais cuidado. De imediato, apercebe-se da falha e conduz a palestra para onde quer.

Ao fim de duas décadas, o que nele sobrevive é o rancor, embora sob o aspeto de uma loquaz pena dele próprio: «Enquanto estive preso, a Câmara de Lisboa retirou-me a casa. Durante uns anos, foram à minha conta buscar dinheiro para a renda, até que, em 2015, ma retiraram. Depois daquilo que me aconteceu, fui reformado compulsivamente. Ganho 500 e poucos euros, mas pagava uma renda de 57 euros, fora a água e a luz. Paguei sempre. Sem mais nem menos, fiquei sem nada e a Câmara ainda roubou tudo o que lá tinha dentro: um trompete, viola elétrica, amplificador, e uma coluna. Tinha os meus móveis, que comprei com o meu suor. Quando saí da cadeia, tive de dormir na rua, passei fome. Que Estado de Direito é este em que o presidente da Câmara nem ao respeito se sabe dar, brincando comigo, com o meu direito constitucional de ter acesso a uma habitação?».

Como se nunca um raio de inteligência tivesse penetrado no seu cérebro, partilha com os interlocutores uma série de correspondência trocada com a Câmara, a qual, segundo alega, prova como tem sido injustiçado. Em poucos minutos, encalha-se na mentira. Num documento de 2018, lê-se: «Existe à data uma dívida no valor total de 2.880,72 euros a qual corresponde a 51 rendas vencidas e não pagas, conforme listagem que se anexa».

O apetite de um jogador viciado

Silvino, como sempre, luta contra as armas da lógica. Promete dar mais documentação que demonstra que diz a verdade, mas as explicações que aventura nem a ele próprio convencem. Mantém a astúcia de outros tempos. No seu percurso de pedófilo, começou por usar a violência. Logo percebeu que daquela maneira facilmente se denunciava e, junto das presas, tentou, e conseguiu, substituir-se ao papel do progenitor, de quem tinham pouca ou nenhuma memória. O seu apetite era o de um jogador viciado. Como um camaleão, precisava de adivinhar, num relance, qual a natureza da vítima, a sua história, e imaginar o enredo que lhe fosse direto ao coração. Tenta agora usar a mesma técnica.

Num ápice, muda do tom perentório para o suplicante. Sempre foi pobre. Mas agora bateu no fundo. Quando saiu da cadeia, começou por dormir na rua. Foi lá ter, como os cavalos dão com a água: «O dinheiro da reforma não dava para nada. Estive numa pensão, mas fiquei sem dinheiro em pouco tempo. Tinha de ir para a rua». Deambulou a pé durante horas, até se sentir cansado. Pensou: «Não tenho nada!». Entrou numa loja de chineses. Comprou um cobertor. Procurou papelão e, quando a noite chegou, montou uma cama: «Fiquei em Santos, debaixo de um prédio, com outras pessoas. Mas no dia seguinte roubaram-me o cobertor e o papelão». Começou a esconder o pouco que tinha. Vigia os outros. Segue-os. Imita-os. Passa a fazer a sua higiene diária em balneários públicos e a comer nas carrinhas de instituições que, em vários pontos da cidade, tentam acalmar a fome de uma população que cresce como cogumelos.

Silvino passa a mão pelo cabelo, agora descoberto. Parece cansado: «Há pouco tempo, arranjei outro quarto onde pago 300 euros. Mas continuo a ir comer às carrinhas. Se quiserem, amanhã levo-os lá». Um telefonema interrompe a conversa. Supostamente, tem um encontro marcado com um tio.

Regresso ao local do crime

No dia seguinte, novo encontro junto à Basílica da Estrela – e, desta vez, apenas com a jornalista a quem decidiu, 22 anos depois, dar nova entrevista. Tem a perceção de que este é um daqueles momentos que mudam uma vida… ou acabam com ela. Rumamos à Mouzinho da Silveira, junto ao Marquês de Pombal, onde, por volta das 20h00, Bibi irá recolher o jantar. A rua parece deserta, mas ele conhece às cegas os seus segredos: «Já vai ver! Quando a carrinha aparecer, vêm a correr. Agora estão todos escondidos. Olhe, olhe aquele ali bem vestido e de máscara. Não quer doces, só comida. Mas tem casa. Só vem buscar comida. Se eu tivesse casa não precisava de estar aqui. Não quero mal a ninguém, mas é assim. Os monhés sabem viver!».

Conhece a história de todos com quem se cruza. Com o espírito envenenado contra os imigrantes, apresenta quem surge: «Este não está legal no país, por isso estava a trabalhar, ficou quase sem a perna, e não teve direito a nada».

 A carrinha chega finalmente. Silvino, com à-vontade, aproxima-se de uma das voluntárias do CASA (Centro de Apoio ao Sem Abrigo). Troca umas palavras. Mostra a refeição: «Vê? É esta miséria. Antes, era muita quantidade, mas, com estes imigrantes todos que deixam entrar, o português é que paga».

Sem perceber que foi atingido por igual sorte, aponta agora para um caixote do lixo de onde um velho, seco como um trapo, de calças arregaçadas, pula ligeiro, deixando para trás uma poça de urina. Como um cicerone privilegiado, atira com desprezo: «Está sempre aqui. Anda no lixo à procura de comida podre e deixa tudo porco por onde passa. Como é que se pode dormir na rua nestas condições?!».

Regressa-se ao carro. O tema da casa camarária volta à baila. Fizera uma rigorosa prospeção de mercado e passa a lista: «Estas casas estão todas livres. Na próxima reunião que tiver com a vereadora da Câmara, vou-lhe mostrar. Vamos lá ver se tenho sorte…». A pergunta é inevitável. Por que é que tem de ser nessa zona? Sem que o sangue lhe irrigue o cérebro, Silvino descai-se e dá a sua atual morada: «Porque é aí que tenho um quarto alugado». Percebe-se a escolha. São todas na Ajuda e no Restelo, a minutos dos colégios da Casa Pia onde em tempos viveram as suas vítimas. Diz-se que um criminoso volta sempre ao local do crime.

felicia.cabrita@nascerdosol.pt