Incêndios: uma tragédia que se repete

O fogo vai-se alastrando e assusta cada vez mais a população. E faz lembrar o negro ano de 2017. A Proteção Civil já divulgou que espera ter todos os incêndios controlados nesta sexta-feira. A chuva traz esperança. Mas será que Portugal pode confiar quando continua a haver tanto por fazer?

Os incêndios continuam a consumir Portugal e a situação é cada vez mais preocupante. Para termos uma ideia do impacto destes fogos, as emissões de carbono resultantes dos incêndios florestais  em setembro quase duplicaram o recorde anterior de 2003. Até esta quinta-feira, os incêndios emitiram 1,9 megatoneladas de carbono, comparado com o recorde anterior de 1 milhão de toneladas, de acordo com o serviço Copérnico da União Europeia.

Este é o valor mais elevado dos últimos 22 anos, indicando a gravidade destas ocorrências. Embora se espere que a chuva ajude a controlar as chamas, a qualidade do ar no norte do país deve piorar devido ao fumo. As partículas de poluição, inicialmente dirigidas para o Atlântico, podem voltar a atingir o norte da Península Ibérica e o oeste de França.

Os incêndios em Águeda, Albergaria-a-Velha, Oliveira de Azeméis e Sever do Vouga foram dominados, segundo André Fernandes, comandante nacional de Emergência e Proteção Civil. Embora controlados, mantém-se um grande contingente no terreno devido ao risco de reativações. Mas ainda há quatro incêndios que continuam a preocupar as autoridades, três na sub-região Dão-Lafões (dois em Castro Daire e um em Penalva do Castelo) e um em Arouca. Desde domingo, houve 166 vítimas, incluindo cinco mortos, 71 pessoas assistidas no local, 78 feridos ligeiros e 12 graves. André Fernandes expressou o seu agradecimento aos operacionais e à população das áreas afetadas.

Quem está, infelizmente, a viver estes grandes incêndios é Ana Maria. Antes, adorava viver em Arouca. Agora, a ideia aterroriza-a. «Foi assustador. O fogo avançou muito rápido e tivemos de sair de casa à pressa. Ver a nossa terra e tudo o que construímos ao longo de anos ameaçado pelas chamas é muito mau», explica ao Nascer do SOL. «Tivemos medo de perder tudo, de nunca mais voltar. O cheiro a fumo ainda está por toda a parte e há sempre aquela ansiedade de que o fogo possa voltar. Os bombeiros estão a fazer um trabalho incrível, mas o medo de novas reativações mantém-nos alerta», esclarece.

«É difícil acreditar que isto continua a acontecer todos os anos. Parece que nunca estamos preparados o suficiente e as perdas são imensas, tanto na agricultura como nas casas. E aquilo que mais me assusta é a questão humana. Já morreram cinco pessoas, espero que a nossa classe política olhe para esta situação com olhos de ver», ressalta.

Desde o início do ano, cerca de 139 mil hectares já foram consumidos pelos incêndios em Portugal, segundo o Sistema Europeu de Informação sobre Incêndios Florestais (EFFIS). Até quinta-feira de manhã, 166 fogos contabilizados pelos satélites tinham queimado 138.619 hectares. Esse número já supera a área ardida entre janeiro e dezembro dos últimos sete anos. A última vez que se registou uma área maior foi em 2017, quando 408 incêndios devastaram 563.532 hectares.

«Aqui em Castro Daire, estamos habituados a lidar com incêndios, mas este ano está a ser diferente, muito mais intenso. As chamas chegaram muito perto das aldeias. Vimos terrenos agrícolas destruídos e até os animais ficaram em perigo. A sensação de impotência é terrível. Fizemos o que podíamos, mas o fogo era demasiado rápido», começa por contar António, que, à semelhança de Ana Maria, mostra-se muito comovido ao falar com o Nascer do SOL.

«A união entre os vizinhos está a ser fundamental. Toda a gente se ajuda. Além de reconstruir as nossas vidas, há o medo de que isto volte a acontecer. Falta prevenção, falta limpeza das matas e mais apoio para quem vive no Interior», elucida. «Apesar de tudo, somos uma comunidade forte. Vamos reconstruir, mas precisamos de mais atenção e ajuda para que estas tragédias não se repitam», alerta, apelando, à semelhança de Ana Maria, aos decisores políticos para que analisem bem este panorama negro.

Em entrevista ao Nascer do SOL, João Gonçalo Soutinho, presidente e co-fundador da associação VERDE e doutorando em Biologia, transmite uma análise profunda sobre a questão dos incêndios em Portugal, traçando paralelismos com tragédias passadas e discutindo as falhas na gestão florestal. «Estamos a repetir os erros do passado. Se não gerirmos a vegetação de forma correta, teremos incêndios todos os anos», começa por dizer. Enfatiza a importância de um controlo sustentável da vegetação, sugerindo que a ocupação humana das florestas tem levado ao desequilíbrio dos ecossistemas: «À medida que ocupamos espaço, perdemos o controlo natural que existia antes».

«O abandono de práticas tradicionais, como o pastoreio, resultou na acumulação de material combustível. Isto aumenta o risco de incêndios, pois as florestas não têm a manutenção de que precisam», avança, adiantando que «a sociedade tem de entender que a preservação das florestas é uma responsabilidade coletiva», na medida em que «não se trata apenas de evitar incêndios, mas de criar um ecossistema saudável».

Sobre a gestão das florestas, o biólogo identifica a falta de incentivos para os proprietários: «Os donos de terrenos têm obrigações legais, mas sem retorno financeiro. É como pedir a alguém para manter um carro que só dá despesas. Por exemplo, alguém dá boleia a várias pessoas e não recebe nada». Por isso, sugere a necessidade de pagamento por serviços ecossistémicos, afirmando que «não podemos simplesmente exigir que as pessoas cuidem das suas propriedades sem oferecer suporte».

«Falta uma estratégia coerente e integrada para a gestão das florestas. O Governo deve apoiar os proprietários de terrenos e incentivar práticas sustentáveis», frisa. Deste modo, reitera que a solução para os problemas ambientais não pode ser vista isoladamente, sendo necessário abordar também as questões sociais e económicas: «Os problemas ambientais são frequentemente reflexo de desafios sociais. Se não tratarmos a raiz da questão, continuaremos a enfrentar as mesmas crises».

«Quando as pessoas estão envolvidas, a gestão torna-se mais eficiente. As comunidades devem ser parte da solução, não apenas recetoras de regras», realça João Gonçalo Soutinho, acrescentando que, «se não tomarmos medidas concretas agora, estaremos apenas a adiar a resolução de um problema que se agravará nos próximos anos». Assim, na sua ótica, «a prevenção é a chave».

A chuva enquanto esperança, mas não tanto

O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) vai emitir um aviso amarelo devido à previsão de chuva para esta sexta-feira e sábado em todo o continente, anunciou o comandante nacional da Proteção Civil. Com esta mudança no tempo, é necessário adotar medidas preventivas, principalmente nas áreas afetadas pelos incêndios, onde a chuva forte pode causar deslizamentos de detritos devido à falta de vegetação. André Fernandes alertou para o risco de escoamento de materiais que podem atingir estradas e habitações, recomendando a desobstrução de estruturas de drenagem e a remoção de entulhos. Nos próximos dias, a Proteção Civil estará focada nos incêndios e na preparação para os efeitos da chuva nas áreas ardidas.

Ainda assim, as previsões parecem não animar Joana, bombeira que está a lutar contra as chamas no centro do país. «Não costumo ter problemas em dar a cara e o meu nome, mas desta vez é diferente porque aquilo que vou dizer não é mesmo bonito», declara a profissional que já conta com alguns anos de experiência e está cansada de ver a mesma situação a repetir-se anualmente. «Tem sido uma luta exaustiva. O calor extremo, a seca prolongada e o vento imprevisível tornam o combate às chamas uma missão quase impossível em certos momentos. Temos de enfrentar frentes de fogo que se espalham rapidamente e, muitas das vezes, sentimos que, apesar de todos os esforços, estamos sempre um passo atrás. A meteorologia não tem ajudado, mas, agora que a chuva está a caminho, surgem novas preocupações, como deslizamentos de terra», diz a jovem.

«Outro grande desafio é o desgaste emocional. Sabemos que há incendiários por trás de muitos destes fogos. Estamos a arriscar a vida, enquanto alguém, em algum lugar, provoca mais destruição de forma intencional», afirma, visivelmente revoltada. «A ajuda da população tem sido fundamental, mas é preocupante ver que, em algumas zonas, são os próprios residentes a tentarem travar o avanço das chamas, arriscando a sua segurança. Apesar de ser uma atitude de grande coragem e solidariedade, é perigoso, pois muitos habitantes não têm o treino necessário para lidar com situações tão imprevisíveis. Para além disso, são eles que nos oferecem a própria casa para dormirmos, alimentam-nos, dão-nos água… Por mais bonito que seja, é triste», salienta a bombeira.

«Não há palavras para descrever o cansaço, mas também a determinação. Todos nós, bombeiros, estamos aqui porque acreditamos na importância do nosso trabalho e no dever de proteger as pessoas e as suas casas. No entanto, sem mudanças estruturais e medidas preventivas mais eficazes, este ciclo de tragédia parece não ter fim», avisa. «Acho que devíamos ter soluções práticas para combater os fogos. Por exemplo, mais profissionais devidamente preparados para combater o fogo. Como aqueles que vêm de Espanha», diz.

O exemplo espanhol

Joana refere-se ao facto de o Governo espanhol ter enviado 248 militares e 82 veículos da Unidade Militar de Emergências (UME) para ajudar no combate aos incêndios em território nacional. De acordo com o Ministério da Defesa de Espanha, as unidades estão a atuar na extinção dos fogos florestais com foco na proteção da população. Este apoio foi solicitado pela ministra da Administração Interna de Portugal, Margarida Blasco. Além dos militares, foram enviados dois aviões Canadair para auxiliar nas operações, dentro do Mecanismo Europeu de Proteção Civil.

A questão é que Portugal podia ter uma Unidade semelhante ou até mesmo igual. Mas recuemos no tempo. Em julho de 2017, o tenente-general Frutuoso Pires Mateus foi nomeado pelo PSD para integrar a Comissão Técnica Independente que investigaria o incêndio de Pedrógão Grande. Juntamente com outros cinco peritos designados pelo Parlamento, fez parte de um grupo que apurou os factos relacionados com este evento trágico. Luís Montenegro, à época presidente da bancada social-democrata, destacou que a escolha de Pires Mateus refletia o compromisso do PSD com a isenção e independência da comissão e expressou a esperança de que os trabalhos começassem rapidamente.

O relatório preliminar sugere que muitas das falhas observadas estão relacionadas com a falta de preparação adequada, a não implementação de medidas preventivas a tempo e falhas na comunicação e coordenação entre as várias entidades envolvidas. As populações nas áreas afetadas não estavam suficientemente preparadas para lidar com a emergência e medidas mais eficientes de autoproteção deveriam ter sido implementadas. O relatório indica que haveria uma investigação mais aprofundada para identificar com precisão as falhas e propor recomendações para evitar situações semelhantes no futuro.

Noutro documento, datado de setembro de 2017, e a que o Nascer do SOL também teve acesso, o tenente-general Frutuoso Pires Mateus defende uma abordagem mais sistémica e integrada para o combate aos fogos, sugerindo que o Sistema Nacional de Emergência aproveite melhor os recursos disponíveis no Sistema de Segurança e Defesa Nacional. Também aponta a necessidade de uma maior eficiência na vigilância, comando e formação das forças de primeira intervenção e bombeiros. Uma proposta central no texto é, precisamente, a criação de uma Unidade Militar de Emergência, inspirada no modelo espanhol, que integraria as capacidades dos três ramos das Forças Armadas sob um comando único.

Esta unidade seria altamente móvel, descentralizada e com grande capacidade de resposta. A proposta foi apresentada aos decisores políticos, mas, como explica o tenente-general ao Nascer do SOL, ninguém lhe prestou a devida atenção. «Uma das recomendações feitas pela Comissão Independente resultou na criação da AGIF (Agência de Gestão Integrada de Fogos Rurais), mas ficou aquém das expectativas e a UMEP seria mais indicada», sintetiza.

A_UMEP teria o objetivo de atuar em situações de catástrofes naturais ou outros incidentes que afetem a segurança e bem-estar do país. Seria subordinada ao chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e teria sede no Regimento de Transportes do Exército, em Lisboa, com batalhões distribuídos em várias regiões do país, como Vila Real, Viseu e Leiria. Teria um orçamento próprio e seria financiada pelo Orçamento de Defesa Nacional e através de programas comunitários da União Europeia.

Diferente do atual Regimento de Apoio Militar de Emergência (RAME), que não possui as capacidades conjuntas necessárias, a UMEP seria altamente treinada e focada exclusivamente em missões de emergência, atuando de forma rápida e eficiente. A unidade também seria capaz de operar fora do país, sempre que solicitado. O plano do tenente-geral propunha ainda a participação da UMEP no Sistema Nacional de Emergência (SNE), integrando-se com a Proteção Civil e o sistema de emergência médica. Na proposta, Frutuoso Pires Mateus apela ao envolvimento do Governo e das chefias militares para garantir a concretização desta iniciativa, que tem como inspiração a Unidade Militar de Emergências de Espanha, criada após os trágicos incêndios florestais de 2005. Nunca saiu do papel.

maria.rato@nascerdosol.pt