O passageiro da nossa política

Eduardo Cabrita veio responsabilizar o Governo em funções há poucos meses por ter menosprezado a vertente da prevenção dos incêndios, quebrando-se o «motivo de grande orgulho» para o país de contar «seis anos sem uma vítima civil» desde os incêndios de 2017. Um despudor.

Quando foi obrigado a apresentar a demissão de ministro da Administração Interna,  em 2021, Eduardo Cabrita já estava politicamente morto e enterrado há muito tempo e só o seu autismo em último grau e a teimosia irritante do primeiro-ministro lhe permitiram prolongar o mandato muito para além de todos os limites admissíveis.De tal forma que poucas horas antes da sua última conferência de imprensa como governante, quando confrontado com o facto de o carro em que seguia e que colheu mortalmente um trabalhador na autoestrada circulava à velocidade de 163 km/h e que o Ministério Público deduzira acusação contra o seu motorista, Eduardo Cabrita considerara que o Estado de direito estava assim «a funcionar» e ele, ministro, era «só um passageiro».

Dessa vez, perante tamanha pesporrência e desfaçatez, nem o primeiro-ministro lhe perdoou (até pela proximidade de eleições – António Costa é pragmático e, como deixou bem expresso no momento da sua própria demissão, na política não tem amigos –, Eduardo Cabrita não teve alternativa).

Na mesma conferência de imprensa em que confirmou a sua saída, o ministro que já era uma sombra (e bem negra) não deixou de fazer um balanço com uma série de autoelogios extraordinários.

Entre os quais, a reivindicação dos seus créditos pela reeleição do Presidente da República, já que Marcelo Rebelo de Sousa, depois dos trágicos incêndios de 2017, em junho em Pedrógão e em outubro no centro e norte do país, colocara como fator decisivo na ponderação da eventual recandidatura a não repetição de um falhanço tão clamoroso do Estado na proteção dos seus cidadãos e do seu património.

Para Eduardo Cabrita, foi a sua ação como ministro da Administração Interna e sucessor de Constança Urbano de Sousa que terá evitado novas tragédias e criado as condições para Marcelo poder concorrer a um segundo mandato.

Ora, presunção e água benta cada um toma a que quer.

Acontece que, além de Eduardo Cabrita, foram passando pelas televisões outros ministros da Administração Interna, como o também socialista José Luís Carneiro, que, atendendo às circunstâncias e bem sabendo das responsabilidades que cabem a todos os Governos neste particular, moderaram as suas posições.

Aliás, com raras exceções, os responsáveis políticos têm sido cautelosos e ponderados nas suas intervenções e comentários.

O caos instalado no centro e norte do país é uma repetição do que se passou em outubro de 2017, com a agravante, nessa altura, de se tratar de uma reedição do que se passara apenas três meses antes em Pedrógão e na malfadada estrada nacional 236.

Desta vez, só por felicidade não foi a A1 a transformar-se numa autoestrada da morte. 

São impressionantes e muito reveladoras as imagens gravadas por vários utilizadores da principal ligação rodoviária entre Lisboa e Porto e que se viram encurralados no meio de fumo, fagulhas e chamas de um lado e do outro  com filas de automóveis, camiões e autocarros desorientados.

Manifestamente, o aviso para o corte da circulação surgiu tarde e a desoras e só por sorte não aconteceu o pior.

O que nos remete para a falta de comando, de coordenação e de capacidade de resposta da proteção civil.

Que não é mal que se assaque a um Governo com menos de seis meses. 

Aliás, só quem vive fechado nos gabinetes da capital e anda pelo país em altas velocidades não vê ou finge não ver.

Muito pouco ou nada mudou desde os fatídicos incêndios de 2017. 

Há mais meios aéreos, é verdade, e até foram acionados os mecanismos  de auxílio europeu (além de França, Itália e Grécia, Espanha mandou dois aviões e a sua Unidade Militar de Emergência – a tal que Portugal já há muito poderia e deveria ter e nunca avançou) e de Marrocos.

Mas os males são os mesmos, quer na prevenção e no ordenamento da floresta, quer na falta de meios de deteção imediata e de combate, quer nas falhas ou insuficiências de coordenação e na cadeia de comando.

Basta ouvir os operacionais e sobretudo o povo, sempre em desespero.

Os incêndios em série, muitos de origem criminosa, as elevadas temperaturas e a falta de humidade, as rajadas de vento e as condições no terreno muito adversas por todas as razões já sobejamente identificadas  formam um caldo explosivo e muito difícil de contrariar.E depois é o diabo. E correr atrás do prejuízo, com cada um a fazer o melhor que sabe, mesmo que de pouco ou nada adiante.

Por isso, não se pode dizer levianamente, como Eduardo Cabrita, que foi este Governo que negligenciou a prevenção. 

Foram, sim, todos os Governos das últimas décadas, incluindo aqueles de que Eduardo Cabrita fez parte. E que só falam de ‘zero’ vítimas mortais civis desde 2017 porque nesse ano houve dezenas e dezenas de mortos e prejuízos vertiginosos.

Se até a pesporrência tem limites, no caso de um ex-ministro da Administração Interna que ao tempo dessas tragédias era ministro-adjunto do primeiro-ministro de um Governo com as páginas mais negras deste século na triste história dos incêndios no país é muito mais do que isso: é despudor! 

Enfim, de quem anda na política «só passageiro».