A nuvem de fumo e de cinzas que cobre metade do país fez, finalmente, chegar algumas fagulhas ao universo higienizado da bolha. Soaram os alarmes. No final de um Conselho de Ministros presidido pelo Presidente da República, logo com a sua aprovação implícita, Luís Montenegro declara que «não vamos deixar um minuto do nosso esforço por preencher na ação e prevenção de comportamentos criminosos. Não vamos regatear nenhum esforço na ação repressiva. Não podemos perdoar a quem não tem perdão. Não podemos perdoar atitudes criminosas (…) não vamos largar estes criminosos». Foi preciso que metade do país ardesse numa noite apenas para que a bolha percebesse o que já o common people tinha há muito percebido: que a generalidade dos incêndios tem origem em fogo posto.
A doutrina oficial foi, durante anos e contra todas as evidências, a de que os incêndios eram espontâneos, no limite com origem em alguns maluquinhos que assim se vingavam do povoléu da vizinhança. Os que eram apanhados e iam a julgamento saíam absolvidos (ou com uma leve pena suspensa) e uma paternal recomendação do Meritíssimo para que tivesse juízo, que era muito feio andar a queimar os pinheiros dos outros meninos e que o Menino Jesus não gostava dessas coisas. Só faltava, depois da suave reprimenda, despachar ternurentamente os ‘infelizes’ com uma festa na cabeça, um Kitkat e um sorvete de morango e baunilha. A boa doutrina do CEJ em todo o seu duvidoso esplendor.
O Chega foi, desde sempre, frontalmente contra esta cómoda verdade oficial. Defendia, como defende, que a maioria esmagadora dos incêndios tinha origem criminosa. Que os muitos que eram descobertos e detidos deveriam ser severamente punidos. ‘fascistas’, ‘extremistas’, ‘radicais’, ‘sem coração’, ‘incendiariofóbicos’ diziam eles. Em abril do ano passado o Chega apresentou um projeto-lei em que se propunha a aplicação do regime sancionatório de combate ao terrorismo a reincidentes no crime de incêndio florestal. 2 a 8 anos de prisão. Todas as bancadas votaram contra os doze ‘bárbaros’ do Chega. Vão explicar isso hoje aos que tudo perderam. E às famílias dos bombeiros calcinados. Eles irão, seguramente, compreender.
Mas desta vez o óbvio era ululante: numa mesma noite, em simultâneo, cinco distritos começam a arder. Nem o último dos imbecis iria acreditar numa miríade de combustões espontâneas. Para todos seria óbvio que, conhecedores das previsões meteorológicas, os incendiários profissionais, muitos deles seguramente em ação concertada, meteram mãos à meritória obra.
Há culpados pela destruição e pelas mortes destes dois dias. Culpados por comodismo, por cartilha ideológica, por cobardia ou por mera displicência. Ouvidas as palavras de Luís Montenegro, o Chega deveria reapresentar o seu projeto de lei para que possamos perceber se aquele fala seriamente ou se, uma vez mais, apenas espera que tudo passe para deixar que tudo, depois, fique na mesma, com Montenegro numa variante caseira e chã do Falconeri de Lampedusa.
Infelizmente, dados os resultados, os ‘radicais’ tinham razão. Como sempre. Porque os problemas não se contornam, enfrentam-se. Os problemas não se resolvem nos pequenos ramos ou nas folhas, resolvem-se na sua raiz. E num país onde tudo necessita de ser refeito, só reformas de raiz, ou ‘estruturais’, conseguirão dar fruto. Assim haja coragem.
Vice-presidente da Assembleia da República