O Matuto detesta barulho. Bares que infestam a noite com as suas badernas e roubam o sono. Igrejas evangélicas gritando clichês de vida farta e boa. Carros de som anunciando batatas a 9.99, no supermercado da esquina. Carrinhas vendendo pamonha: “o puro creme do milho verde” – típica cena Brasileira. Carrinhos vendendo gás, e assassinando “Para Elisa” de Beethoven, com sua melodia metálica. As motos com escapamentos livres a deitar fumo. Os martelos pneumáticos das eternas construções. As britadeiras. O ladrar irritante dos cães urbanos. Caminhões que já mereciam a reforma (aposentadoria, no Brasil, por favor) e ainda resfolegam pela cidade como que ligados a máquinas de oxigénio. Alarmes de carros, de lojas e de casas a disparar. Buzinas. Sirenes. Lixeiros. Os pedestres reclamando: “Filho da ….”! E o som? – resmunga o Matuto. É som de música enlatada na farmácia, no autocarro, no consultório do dentista, no aeroporto, na padaria, no supermercado, na sala de espera da repartição pública, nos apps nos telemóveis, no taxi, no elevador… É um horror! O Matuto anseia por um minuto de silêncio. Para ouvir o silêncio. Na verdade, este som constante é antidemocrático. O Matuto gosta de jazz, mas é obrigado a escutar a Beyoncé, nos supermercados. E quem gosta de rock leva com música clássica nas salas de espera. Não há democracia nesse som omnipresente. É uma ditadura! Há um ruído constante no ar. Uma espécie de atrofiamento dos sentidos. O crime hoje em dia é parar para pensar. Silenciar para ponderar. Aquietar para meditar. O ruído ao nosso redor funciona como um casulo, uma rota de fuga do confronto com a nossa essência mais íntima. Nesse processo frequentamos espaços esquizofrénicos. O caos externo, abafa as duras realidades internas que o silêncio nos deseja revelar. E o Matuto apenas anseia por um pouco de silêncio.
Recentemente, celebrou-se o 7 de Setembro que aqui no Brasil é lembrado como o Dia da Independência de Portugal. Correctíssimo! A data este ano foi usada para denunciar os ignóbeis abusos de poder do desprezível juiz Moraes. É sempre tempo de festa rija com churrascos e danças. O Matuto gosta desta celebração. A cidade do interior do Estado de São Paulo que tão generosamente acolheu o Matuto no seu seio, costuma organizar “desfiles cívicos”. Este ano, desfilaram pela Av. Brasil, grupos amadores de música, judocas, ginastas, corredores, populares com seus animais de estimação, grupos de escuteiros, alunos das escolas públicas, membros de associações de caridade, atletas que já representaram o Brasil, bombeiros, funcionários públicos, militares… e agentes da Polícia Federal. Na frente à abrir caminho, as fanfarras apitavam e sopravam. A Av. Brasil matizada de verde e amarelo. O Matuto e sua gentil esposa, Dona Sirlei, apreciam um momento de repouso vendo o desfile, sentados na sua varanda (sacada, no Brasil, por favor). Reina uma certa bonomia. Pura ilusão! Eis que de repente o ar é invadido por um helicóptero militar. As hélices corrupiando. O motor ribombando. O barulho penetra no cérebro. O pássaro de ferro parqueia mesmo em frente ao Matuto. Pendurado, um soldado da Polícia Militar ostenta uma metralhadora enorme, com um sorriso bélico. O Matuto fica sem pinga de sangue. Dona Sirlei finca os dedos na perna do Matuto. Agora, o ar é um chicote fustigando os dois coitados na varanda. Rapidamente, mais dois bicharocos feéricos juntam-se ao primeiro. Parecem três gafanhotos metálicos. Será uma praga!? É que os gafanhotos são vorazes. E estes helicópteros têm todo o ar de estarem esfaimados. Irão esganar a serenidade e tranquilidade do Matuto. E o Matuto apenas anseia um pouco de silêncio!
Ora, o Matuto não é primeiro a lutar contra este estado de coisas. O Matuto está em condições de afirmar que no seu livro “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, Lima Barreto escreve sobre um idealista obcecado por transformar o Brasil num país silencioso. Policarpo incomoda-se profundamente com o barulho caótico da vida urbana. Para Policarpo o bramido citadino é sinónimo da desordem nacional. O pobre coitado busca refúgio num sítio (quinta, em Portugal, por favor), para ter paz. Todavia, é atormentado por ruídos de galos cantando, cães ladrando, burros zurrando e tractores roncando – questões que lhe lembram a sua falência utópica. Portanto, o Matuto não é o único a desejar um minuto de silêncio. Também Carlos Drummond de Andrade escreveu sobre o “terror” e o desconforto do barulho da cidade. Em “A rua diferente”, ele descreve o estrépito incessante das ruas e como isso afecta o quotidiano das pessoas. Drummond descreve o cansaço gerado pelo frémito urbano.
Na minha rua estão cortando árvores
Botando trilhos
Construindo casas.
Minha rua acordou mudada.
Os vizinhos não se conformam.
Eles não sabem que a vida
tem dessas exigências brutas.
Só minha filha goza o espetáculo
e se diverte com os andaimes,
a luz da solda autógena
e o cimento escorrendo nas formas.
Carlos Drummond de Andrade
“O meu Reino por um pouco de silêncio” – brada o Matuto, numa imitação rasca de Ricardo, o rei corcunda de Shakespeare. Porque só mesmo por olhos infantis, é que o barulho e os “andaimes”, ganham cara de espectáculo – sustenta o Matuto.