Comecei a ler, aqui no NASCER DO SOL, o manifesto anti – Mia, do João Vasco Rodrigues (JVR), convencido que a coisa era sobre literatura.
Engano – percebi logo na segunda linha.
Afinal, é uma nova receita de bacalhau.
Abóbora! Afinal também não o é – entendi logo a seguir: é antes um ataque cerrado aos serviços gerais de empacotamento avulso. Mas, não percebi bem qual a dimensão do pacote em causa, nem o destinatário do envio.
Mas que texto tão ricamente embrulhado, que magnífico labirinto de metáforas; a que vasto beco nos conduz, a galharda prosápia do autor.
É notável, como dispara – linha, após linha, após linha – múltiplas e absolutamente desnecessárias descobertas sobre tantos, tão diversos e complexos assuntos.
Um verdadeiro paladino de verdades gerais.
E, mesmo quando – modestamente – nos inclui nas suas geniais descobertas geográficas: – “Todos sabemos como África permanece um continente vastíssimo e ainda desconhecido.” – não deixa de vincar o carácter inovador e mesmo disruptivo do seu pensamento.
Como nunca tinha eu pensado nisto?
De facto, ele tem toda a razão: a África não tem encolhido quase nada, permanece um continente vasto, como sagazmente conclui.
Por que será?
Arguto, o autor responde fingindo que não sabe, mas sabendo, como não podia deixar de saber, porque o escreve.
É claro que é por causa daquilo que ele afinal conhece, mas finge – só para nos entusiasmar – não conhecer:
“Conhecemos apenas os seus desastres: as secas, as chuvas intensas, os ciclones, a fome severa…”. Brilhantemente original.
Registe-se o inteligente uso das reticências nesta frase, deixando o leitor, poeticamente, flanar pela tal vastidão do Continente, de desgraça em desgraça. Honesta e definitiva a confissão.
Que bom, que ele nos alerte para o facto.
E sim, desconhecido, como conclui.
Magnífica, a forma incansável como, palavra a palavra, JVG nos dá um cabal testemunho dessa tão comum ignorância. Notável, como cada uma das suas declarações comprova o seu axioma.
Que se cale de Pangloss toda a redonda retórica, Cândido tem novo mestre.
Só me atrevo, um quase nada, a perturbar a clarividência do autor para reclamar pela irritante e contumaz falta do artigo em África. Que diabo, pobres seremos, mas isto de sermos o único Continente que nem artigo pode ter já me cansa.
Em Moçambique não temos posses para ter quatro estações por ano.
Temos duas e a muito custo.
Ao menos deixem-nos um artigo bem definido.
Imparável, JVG, passa da ignorância assumida sobre o Continente, para a ignotícia sobre o Mia Couto.
E, numa hodierna reinterpretação do Mapa cor-de-rosa – na qual nos revela o seu profundo conhecimento de alguns arcanos e misteriosos sortilégios africanos – empacota o Mia e o Agualusa na tal literatura africana e, com aquela audácia que só a profunda ignorância permite, declara-os …”(…)dois vendedores de banha da cobra,(…) dois capatazes dissimulados de uma literatura africana(…).
Que inteligência, que argumento subtil. Vejam como ele metaforiza bem, como domina a antropologia e a História, como sintetiza – a África, as cobras e os capatazes – numa polida frase.
Navega, de metáfora em metáfora, com a delicada elegância do hipopótamo, para me ater à fauna local.
“Talvez tenha chegado o momento de nos atravessarmos. E foi assim que por estes dias nos atirámos à leitura de “Compêndio para Desenterrar Nuvens”.
Esta é que me deixou de rastos.
Confesso, agora estou entusiasmado!
Isto vai aquecer, o plural majestático não me permite duvidar.
Ele atirou-se – e sem rede como se percebe – à leitura de um livro. E teve a generosidade de o ler todo!
É sobre-humano, como num ápice, ele alcança uma compreensão tão profunda e genuinamente ignorante da obra do Mia.
Como, num relance, percebe que todos os que ao longo das últimas décadas admiraram a sua escrita estão errados.
Com que coragem denuncia a enormidade da conspiração intercontinental, que levou dezenas de incautos a, um pouco por todo o mundo, atribuírem os mais conceituados prémios da literatura a tal homem.
Ora, lá está outra vez o tal mistério africano que parece atormentar JVG.
Mas, como é que faz para conseguir ser o único a marchar com o passo certo nesta multidão de coxos?
E os adjectivos, já mediram bem o trabalho que dá atingir aquele nível de vulgaridade? É obra.
Os mais incautos de entre nós ainda poderiam vislumbrar, por entre as palavras assanhadas, um verde assomo de inveja por tantos e tão prestigiados prémios, por tão longa e profícua carreira.
Os mais distraídos, talvez pudessem pensar que tanto azedume não passa de uma tentativa serôdia e disparatada de, ao se confrontar com algo que não pode emular, sublinhar publicamente a sua incapacidade.
Uma espécie de Salieri caseiro, um pequeno Iago.
Mas, não consigo acreditar que tão dramático objectivo habite em tão irreflectida prosa.
Nem percebi bem a metáfora culinária do bacalhau, ou a da banha.
E, confesso que não fui suficientemente perspicaz para entender JVG, quando, magnânimo, declara:
Se, por um lado, nos vem oferecido diariamente como uma espécie de herói da literatura africana, por outro, talvez nos bastasse o dia em que deixasse de escrever e de interferir na dinâmica da edição de livros, para que pudéssemos então começar a ouvir falar daquilo que nos oferecem grandes escritores como Maryse Condé, Aimé Césaire, Luís Bernardo Honwana ou Achille Mbembe.
Fiquei confuso.
Será uma intrincada citação de Camões – “Cesse tudo o que a Musa antiga canta”?
Por momentos, debati-me com a complexidade da proposta.
Depois percebi a meridiana clareza da ideia: para promover a literatura, é preciso que um escritor deixe de escrever.
Não sendo Camões, será Goebbels?
Ultrapassa-me.
“Herói da literatura africana”, não sei bem se haverá, nem se o Mia o será. Mas se JVG diz que existem, lá terá as suas razões.
Mas acreditar que o seu heróico super-poder lhe permite estender a sua influência maléfica pelo espaço, do Índico às Caraíbas, para silenciar Maryse Condé; e pelo tempo – para embranquecer Césaire e atirar Honwana aos cães; e convencer os Camarões e a Sorbonne que fazem mal em ler o Mbembe, porque ele está mesmo aqui à mão… isto não sei se o Mia o conseguirá.
Mesmo com o recurso aos tais mistérios africanos já listados.
Mas JVG diz que sim. E ele lá saberá o que diz.
Indomável, não hesita em discorrer sobre o que ignora.
E passa ao ataque!
Então não é que o Mia, em vez de aplicar o dinheiro em vacinas e nessas coisas a que os africanos se devem dedicar, teve a coragem de participar na criação de uma Fundação dedicada à literatura e à arte?
Mas que raio?
Que sentido é que faz um escritor querer promover a literatura – e o incentivo a jovens escritores; e a reflexão sobre a cultura moçambicana; e o teatro e as centenas e centenas de eventos com que, desde a sua criação, a Fundação Fernando Leite Couto tem marcado a vida cultural da capital moçambicana?
Pois claro, vê-se logo que JVG talvez saiba do que não fala e se mantém consistentemente desinformado sobre o que se passa em Maputo.
Faltava o golpe de mestre. O argumento derradeiro e imbatível.
Então não é – denuncia, garboso, o articulista – que não satisfeito com tanto êxito, o Mia ainda teve o dislate de promover a venda de livros a preços acessíveis ao comum dos cidadãos moçambicanos?
Mas então?
Então, tem algum sentido que um escritor, em vez de se preocupar com as leis do mercado – que JVG tão lustrosamente quer defender – se dedique, ao contrário, a tentar levar os seus livros ao maior número de pessoas possíveis, ao mais reduzido preço que consegue?
E que, não contente com o despautério, este escritor moçambicano, trabalhe para que os seus títulos sejam publicados em Moçambique, por uma instituição moçambicana?
Blasfémia!
E, finalmente, com o espírito de indómito cruzado que anima toda a sua catilinária, João Vasco Rodrigues termina com um apelo directo a deus.
Estou certo que será ouvido.
Ou não fosse dos simples o reino dos céus.