As crises no SNS, as causas que lhe estão subjacentes e a necessidade de uma reforma profunda (Parte II)

Há necessidade de uma solução estrutural para os problemas do SNS e essa só poderá advir de uma modificação do papel do Estado e alteração de algumas das suas funções, numa nova configuração/modelo do sistema de saúde.

Em artigo anterior, neste semanário, referi que o SNS na sua configuração atual, em que o Estado desempenha todas as funções (de Prestador de cuidados de saúde, de Financiador, de Empregador de todos nos recursos humanos e de Gestor), nunca ao longo da sua existência de 45 anos conseguiu resolver os problemas de acesso da população: sempre existiram listas de espera para cirurgias e consultas, nunca se conseguiu a cobertura de todos os portugueses por médicos de família, sempre existiram crises das urgências hospitalares e o funcionamento dos cuidados primários (centros de saúde) nunca respondeu, de forma generalizada, às necessidades da população.

Estes problemas de acesso, sob a gestão do Estado, levaram uma parte significativa da população a recorrer aos privados, pagando, quando a Constituição garante a todos os portugueses cuidados de saúde gratuitos (só com taxas moderadoras). Hoje existem cerca de 3,5 milhões de pessoas com seguros de saúde privados e mais 1,5 milhões de funcionários públicos (incluindo forças de segurança) e suas famílias – cerca de 50% da população, que recorrem normalmente ao setor privado da saúde. Existe também no SNS uma muito elevada ineficiência quanto a custos : estima-se, numa ótica conservadora, que o Estado poderia ter menos 3 mil milhões de custos para satisfazer as mesmas necessidades de cuidados de saúde da população.

Há necessidade, assim, da procura de uma solução estrutural para os problemas do SNS, sem a qual os problemas passados e atuais continuarão a repetir-se no futuro. Esta solução estrutural, a meu ver, só poderá advir de uma modificação do papel do Estado e alteração de algumas das suas funções, numa nova configuração/modelo do sistema de saúde em Portugal.

O Estado, nesta nova configuração, adiante explicitada, continuará a ser o garante do acesso de toda a população aos cuidados de saúde, de forma geral, universal e gratuita (só com taxas moderadoras), tal como hoje, ou seja as modificações estruturais a introduzir no papel do Estado, não colidem nem prejudicam, de algum modo, os direitos dos portugueses, expressos na Constituição na área da saúde, que permanecem inalteráveis.

Isto não significa a sacralização do papel do Estado, na área da saúde mas antes o reconhecimento de que o Estado tem que garantir os direitos dos portugueses expressos na Constituição mas não tem que ser o único ou o principal ator na prestação dos cuidados de saúde à população.

Todos os países desenvolvidos na União Europeia têm o mesmo objetivo de garantir a todos os seus cidadãos o acesso aos cuidados de saúde de que estes necessitam. A forma de concretizar essa garantia é que é variável.

Os exemplos abundam na União Europeia onde existem países, que estão classificados no ranking dos sistemas de saúde europeus, em melhores posições do que o SNS português, e em que o Estado não está envolvido como prestador dos cuidados de saúde ou, estando, coexiste com outros prestadores privados ou sociais.

De facto os sistemas de saúde europeus seguem, no essencial, dois modelos: o modelo ‘beveridgiano’ (baseado no Relatório do Lord Beveridge que deu origem, logo após a 2.ª Guerra Mundial, ao National Health Service (NHS) inglês e de onde retirámos o modelo para o nosso SNS) e o modelo ’bismarckiano’ (assim denominado por a sua primeira implementação ter sido levada a cabo, na Alemanha, no final do sec XIX pelo então chanceler Otto Bismarck).).

No modelo ‘bismarckiano’ o sistema de saúde é tipicamente baseado em seguros sociais obrigatórios, financiados pelos descontos dos trabalhadores e dos empregadores (e pelo próprio Estado no caso de pessoas sem posses) e os recursos financeiros assim obtidos são colocados em Fundos de Seguros de Saúde, geridos por múltiplas entidades, sem fins lucrativos, regulados pelo Estado que garantem o acesso da população aos cuidados de saúde através da contratualização, sem discriminações, de entidades prestadoras, públicas, privadas ou sociais.

No caso alemão, por exemplo, são estes Fundos de Seguros de Saúde, regulados pelo Estado (e geridos por mais de cem seguradoras independentes, sem fins lucrativos) que possibilitam o acesso e pagam os cuidados de saúde prestados à população pelos diversos prestadores (públicos, privados e sociais). Todas as pessoas com seguros de saúde obrigatório, têm liberdade de escolha do Fundo a que pretendem aderir.

Neste modelo, existe a separação entre Financiamento e Prestação, com a existência de várias entidades financiadoras que contratualizam com várias entidades prestadoras, de qualquer natureza (pública, privada ou social), estabelecendo um sistema de concorrência/competição, em favor do utente, com um estímulo potente para uma maior eficiência quer em termos de custos quer em termos de facilidade de acesso, o que não acontece no nosso modelo ‘beveridgiano’.

Esta separação garante também a ligação entre financiamento e resultados o que não tem acontecido no SNS : no período entre 2015 e 2023, de governação socialista, as despesas do SNS aumentaram cerca de 5,5 milhões de euros (60%) com piores resultados para a população.

No ranking mais recente da Euro Health Consumer Index, dos 12 países mais bem classificados (Portugal surge no 13.º lugar) 7 deles são de matriz ‘bismarckiana’ (Suíça, Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo, Áustria, França e Alemanha) e os restantes 5 são de matriz ‘beveridgiana’ (Noruega, Dinamarca, Finlândia, Suécia e Islândia – 3.ª, 4.ª, 6.ª. 8.ª e 10.ª posição, respetivamente). Nestes países, de matriz ‘beveridgiana’, todos nórdicos, em que a prestação e o financiamento estão nas Regiões (e não no Estado Central) existe uma cultura politica e de gestão que lhes permite, com excelentes resultados, conciliar a eficiência quer em termos de acesso aos cuidados de saúde, quer em termos de custos, com o caráter geral, universal e gratuito dos seus sistemas de saúde, o que não acontece em Portugal.

Atendendo ao que foi exposto, e porque ao longo dos 45 anos de existência, no quadro do atual modelo (beveridgiano) do SNS, nunca foi possível responder aos graves problemas descritos. é fundamental, a meu ver, fazer evoluir o SNS para um novo modelo, que integre também elementos do modelo ‘bismarckiano’ e cuja configuração assenta nos seguintes princípios fundamentais:

  • Coexistência do Estado com as iniciativas privada e social na prestação de cuidados de saúde à população. Para tal o Estado contratualizará cuidados de saúde para a população, com prestadores privados e sociais, com objetivos definidos a atingir e pagamento pela concretização desses objetivos, criando um ambiente de ‘benchmarking’ e de competição/concorrência, a favor dos utentes;
  • Separação entre o Financiamento e a Prestação, que resulta desta nova configuração do SNS, com prestadores privados e sociais, assegurando, assim, a ligação entre resultados para a população e financiamento;
  • liberdade de escolha pelos utentes dos prestadores quer sejam públicos, privados ou sociais o que colocará em confronto/competição o desempenho entre todos os prestadores, sejam públicos, privados ou sociais;
  • Criação de um ambiente de meritocracia nas unidades prestadoras públicas com avaliação efetiva de desempenho ligada a incentivos e penalizações.

Esta evolução, que poderá ser feita de forma progressiva e faseada, permite conciliar o caráter geral, universal e gratuito (só com taxas moderadoras) do nosso modelo atual do SNS, (em que o Estado continuará a garantir os cuidados de saúde para a população e a assegurar os princípios da solidariedade e equidade, como hoje) com uma muito maior e melhor resposta quer em termos de acesso da população quer em termos de menores custos (para o Estado e para os contribuintes).

Nos cuidados primários, a contratualização pelo Estado, passará pela criação das Unidades de Saúde Familiares (USF´s) tipo C, (já prevista na legislação existente), ou seja pela contratualização às iniciativas privada e social, de cuidados de saúde para a população, em centros de saúde já existentes ou a construir.

Nos cuidados hospitalares, a contratualização dos cuidados de saúde às iniciativas privada e social deverá ser feita em relação a hospitais quer existentes, quer a construir/substituir, através de novas PPP – Parcerias Público-Privadas que deram excelentes resultados (gerando centenas de milhões de euros de poupanças para o Estado com melhor acesso da população) comprovados por entidades oficiais credíveis como o Tribunal de Contas e a Entidade Reguladora da Saúde.

Esta nova configuração/modelo do SNS levanta algumas questões fundamentais, como por ex: estamos a desviar recursos e a “dar dinheiro aos privados’ como afirmam os partidos da esquerda? E a criação e generalização das ULS – Unidades de Saúde, constitui a grande reforma que vai resolver os problemas do SNS, como proclama o Partido Socialista? No próximo artigo abordarei estes temas.

Gestor