Duas centenas e meia de figuras, onde se juntam liberais como Francisco Pinto Balsemão, Cotrim Figueiredo, Rui Rio ou Rui Rocha, e marxistas como Francisco Louçã, Catarina Martins ou Rui Tavares , bem como a inevitável Isabel Moreira, subscreveram uma carta-aberta a pressionar o Governo a regulamentar a eutanásia, que já foi aprovada há mais de um ano pela AR.
Muitas destas pessoas não são estúpidas, nem inexperientes, nem ingénuas, pelo que é muito estranho que não percebam uma evidência: o problema não é a regulamentação da eutanásia.
Pode fazer-se uma regulamentação magnífica, com a qual todos estejam de acordo, mas a questão não está aí: a questão é a abertura da porta à eutanásia.
A partir do momento em que a porta se abre, nunca mais se fecha. E vai-se abrindo sempre, mais e mais.
Sabemos como estas coisas começam, mas não sabemos como acabam.
Ou melhor, até sabemos, se olharmos para o que aconteceu, por exemplo, com o aborto.
Começou por ser uma luta contra a penalização das mulheres que abortavam. Contra o facto de as mulheres poderem ser julgadas e condenadas por abortar. Argumentou-se que, em certas circunstâncias excecionais – como a violação ou o perigo de vida –, e dentro de certos prazos, o aborto devia ser permitido.
Quem não concordaria com isto?
Os mais bem-intencionados aprovaram a ideia e julgaram que a luta ficaria por aí.
Mas não ficou.
Depois começou a luta pelo aumento dos prazos para abortar. E pelo alargamento das exceções em que o aborto era autorizado.
E quase sem se dar por isso, deu-se uma mudança fundamental: passou-se da ‘despenalização do aborto’ para o ‘direito ao aborto’, ou seja, para a liberdade de as mulheres abortarem, se quisessem.
O aborto deixou de ser ‘tolerado’ para ser ‘um direito’.
E se, de início, ainda tinha de ser justificado, até essa última barreira caiu: hoje as mulheres não têm de explicar nada, de justificar nada, basta apresentarem-se à porta do SNS e dizerem que querem abortar. E o aborto faz-se gratuitamente.
A partir do momento em se entreabriu a porta ao aborto, esta não parou de se abrir – até se escancarar por completo. Em poucos anos, passou-se da tímida despenalização à liberalização sem restrições.
Ora, é isto que acontecerá inevitavelmente com a eutanásia.
Eu consigo perfeitamente perceber que, em situações-limite, uma pessoa queira morrer e deva ter direito a uma morte digna. Aliás, os filmes que propagandeiam a eutanásia – e são vários – são sempre baseados em casos terríveis, de indivíduos que perderam toda a autonomia e para os quais a vida se tornou um fardo insuportável. Percebo isso muito bem.
Mas os signatários já não são crianças, nem pessoas inexperientes, e deveriam saber que o caso não ficará por aqui. A porta hoje abre-se um bocadinho, amanhã mais um pouco, e de repente encontramo-nos numa situação em que tudo será permitido.
Aliás, nem é necessário especular. Basta olhar para certos países onde a eutanásia foi legalizada para vermos o que nos espera. Na Bélgica passam-se situações chocantes. Médicos que vivem não de salvar mas de matar. Homens e mulheres com vida normal que pedem para ser mortos porque estão deprimidos.
Em alguns países, a eutanásia tornou-se um negócio hediondo. Faz-se abertamente a propaganda da morte. Pessoas são pressionadas para morrer. ‘Já viu o estado em que você está? O que é que anda cá a fazer?’. ‘Já tomou consciência de que é só um peso para os seus familiares?’ ‘Que prazer tem em viver? Não seria altura de se libertar do corpo e conseguir a paz?’. Os apelos à morte podem ter mil justificações. Os que fazem dela um negócio encontram publicitários para fazer bons slogans.
Por que é que em Portugal – e em muitos países – a pena de morte foi abolida? Porque não tinha retorno, não permitia voltar-se atrás. Se houvesse um erro, era irremediável. Ora, na eutanásia há o mesmo problema: depois de alguém se sujeitar a ela, não pode voltar atrás. Não pode arrepender-se. Quantas pessoas que fazem a sua vida normal não tiveram já numa ou noutra circunstância da vida vontade de morrer?
Em lugar de quererem acelerar o processo de regulamentação da eutanásia, os signatários da carta-aberta deveriam pensar numa coisa muito simples: que essa regulamentação não servirá para nada. De cedência em cedência, estaremos como outros povos mergulhados numa sociedade onde se fará apelo à morte assistida como às compras num supermercado.
Estas pessoas, eventualmente muito inteligentes, faltaram a uma lição básica: a fronteira entre a vida e a morte tem de ser natural. Quando começam a abrir-se exceções, nunca mais se pára.