As crises no SNS, as causas que lhe estão subjacentes e a necessidade de uma reforma profunda (Parte III)

Quem assegurará a função de regulação e fiscalização do novo sistema de saúde, em que coexistem prestadores de natureza pública, privada e social?

Em artigos anteriores, expus as razões pelas quais, a meu ver, o SNS necessita de uma reforma profunda, com a modificação do papel do Estado e da configuração atual do SNS.

Esta nova configuração do sistema de saúde em Portugal, na qual o Estado continuará a garantir os cuidados de saúde à população, respeitando a Constituição, mas em que existirão vários prestadores de cuidados de saúde – públicos, privados e sociais – levanta três questões fundamentais que importa considerar e responder:

1.ª – A modificação de organização e gestão em curso no SNS através da cobertura de todo o território pelas Unidades Locais de Saúde, é a grande reforma que, se implementada, irá resolver os problemas de fundo do SNS como o PS proclama e tornando inútil a reforma profunda que proponho?

– Como referi e fundamentei, a gestão pública do SNS nunca resolveu, ao longo dos seus 45 anos de existência, os problemas de acesso da população aos cuidados de saúde, fundamentalmente, por falta de 2 estímulos, estruturais, permanentes, para uma resposta eficaz e eficiente e sustentada.

A falta de um deles, vindo do ‘interior’, tem a ver com a existência, no Estado, de uma gestão de recursos humanos burocrática, sem avaliação do desempenho individual ligada a incentivos e penalizações, num contexto contrário a um sistema de meritocracia, com influência politica e partidária nas decisões de gestão. Ora as ULS continuarão sob a mesma gestão de RH, sem modificações, de fundo, estruturais e portanto sem este estímulo fundamental, permanente, para uma resposta e eficiência sustentadas.

O outro estímulo, este vindo do ‘exterior’ tem a ver, como atrás referi, com a necessidade da criação de um sistema de competição/concorrência a favor da população, que só poderá ser criado pela nova configuração do SNS em que existirão prestadores públicos, privados e sociais com liberdade de escolha dos utentes.

Nesta nova configuração o Estado contratualizará com as iniciativas privada e social a prestação de cuidados para a população, definindo objetivos (ganhos em saúde) a obter e custos de eficiência a atingir, pagando apenas por resultados alcançados e colocando todos os prestadores – públicos, privados e sociais – num ambiente de ‘benchmarking’ e competição a favor da população.

A proclamada grande reforma do SNS, pelo Partido Socialista, através da criação e generalização das ULS, é alheia e não enfrenta esta questão fundamental, continuando a não existir, no sistema de saúde, um estímulo fundamental ‘vindo do exterior’ que a meu ver é fundamental para uma resposta sustentada, eficiente e atempada às necessidades de saúde da população.

De facto, a criação e generalização das ULS, nas quais um hospital e os centros de saúde de uma dada área geográfica, estão concentrados sob uma mesma gestão e direção de um mesmo Conselho de Administração, consolida verticalmente a gestão do Estado, alargando-a e dificultando ou mesmo impedindo a contratualização dos cuidados de saúde pelo Estado às iniciativas privada e social.

Esta organização realizando a verticalização da gestão dos centros de saúde e hospitais, aponta para uma ótica de funcionamento de comando e controle, com a predominância de uma lógica de influência hospitalar, comprometendo a autonomia dos centros de saúde, sujeitando-os a uma relação subordinada de gestão e afastando-os do seu foco fundamental que é o da prevenção e proximidade/acompanhamento dos doentes, em especial, dos doentes crónicos, pelos médicos de família.

 O objetivo proclamado e declarado para a criação e generalização das ULS foi o de garantir a integração dos cuidados primários e dos cuidados hospitalares, ou seja, assegurar para a população, a articulação entre estes cuidados. Esta integração é, de facto, fundamental mas não tem que ser realizada pela verticalização da gestão dos centros de saúde e hospitais com os consequentes problemas que referi. A integração dos cuidados primários e hospitalares pode e deve ser feita, e garantida à população, através do Processo Clínico Eletrónico, aplicando as novas tecnologias, pelo qual todos os médicos, quer dos centros de saúde quer dos hospitais, tenham acesso a toda a informação necessária do utente.

Esta questão da integração dos cuidados primários e hospitalares não é obviamente uma questão apenas do SNS colocando-se em todos os sistemas de saúde. Por exemplo, no sistema de saúde inglês (o NHS) também de matriz ‘beveridgiana’, como o nosso, e do qual que retirámos o modelo para o nosso SNS, não é necessária a verticalização dos hospitais e centros de saúde. Estes não estão sob a direção de uma mesma direção centralizada: os centos de saúde são geridos pelas ‘Clinical Commissioning Groups’ e os hospitais pelos ‘NHS Trusts’.

De referir, ainda, que 2 estudos – um de 2015 da Entidade Reguladora da Saúde e outro de 2018 – não comprovaram as vantagens das ULS, já então existentes, na integração de cuidados.

2.ª – Nesta nova configuração do sistema de saúde em Portugal estamos a desviar recursos do Estado: a ‘dar dinheiro aos privados’ como alguma esquerda e toda a extrema-esquerda afirmam?

A realidade é que, pelo contrário, o Estado (e os contribuintes) beneficiam desta nova configuração, suportando menos custos (e tendo a população melhores cuidados de saúde).

Para ilustrar e fundamentar esta afirmação basta ter presente os resultados das Parcerias Público-Privadas (PPP) nos hospitais públicos em que a gestão foi contratualizada com a iniciativa privada e que geraram centenas de milhões de euros de poupança, com melhor acesso e qualidade de atendimento dos utentes, como foi comprovado pelo Tribunal de Contas e a Entidade Reguladora da Saúde.

Quando em 2004, como ministro da Saúde, anunciei publicamente o lançamento de 10 novos hospitais em PPP, dos quais 4 vieram a ser construídos, estava convicto, como se veio a comprovar, que os elevadíssimos custos de ineficiência dos hospitais do SNS, poderiam ser combatidos (com melhores resultados para a população) através das PPP.

A fundamentação para esta convicção é fácil de explicar:

– Assumamos, por exemplo, que um determinado hospital do SNS, gerido pelo Estado, para assegurar os cuidados de saúde a toda a população que serve, tem custos de 100 milhões de euros.

– Lançado um concurso público, um prestador privado ganha esse concurso, cobrando do Estado apenas 85 milhões de euros.

 – As 2 questões imediatas são: o prestador privado assegura todos os mesmos cuidados de saúde? E como é possível ao prestador privado ‘fazer’ por 85 milhões o que o Estado ‘faz’ por 100?

É claro que a resposta à primeira questão é positiva: o contrato da contratualização dos cuidados ao prestador privado é quantificado e controlado e fiscalizado estreitamente.

Quanto à 2.ª questão, basta que a eficiência da gestão privada seja superior à da gestão pública (o que não é nada difícil dada a elevadíssima ineficiência do Estado) para que a iniciativa privada possa prestar os mesmos cuidados de saúde por um custo bastante menor. Se essa diferença de eficiência for de 20% (e é generalizadamente reconhecido que a diferença é muito maior) então os custos do prestador privado são de 80 milhões de euros (100 x 20%). Como o privado, neste exemplo, cobra ao Estado 85 milhões, tem uma margem de 5 milhões (o prestador privado não faz benemerência). Mas o Estado (e os contribuintes) têm uma poupança de 15 milhões (100 milhões que o Estado gastava menos os 85 milhões que passa a pagar ao prestador privado).

Convém aqui relembrar que esta ineficiência do Estado não é devida a uma suposta qualidade inferior dos recursos humanos do Estado face, por exemplo, à das pessoas empregadas no setor privado. O problema está na forma como o Estado gere os seus recursos humanos cujos problemas atrás descrevi.

E a prova desta afirmação encontra-se nos hospitais em PPP em que a iniciativa privada assumiu a gestão desses hospitais públicos. Como referi, as PPP geraram centenas de milhões de euros de poupanças (com melhor acesso e atendimento da população) e estes resultados foram obtidos pelos profissionais pertencentes ao SNS sob gestão da iniciativa privada (os prestadores privados ,em regra, contratam um nº reduzido de profissionais e, dos seus próprios recursos humanos, apenas trazem para as PPP reduzidas equipes de gestão).

3.ª – Quem assegurará a função de regulação e fiscalização do novo sistema de saúde, em que coexistem prestadores de natureza pública, privada e social? O Estado continuará a ter um papel importante na nova configuração do sistema de saúde?

 A regulação e fiscalização será assegurada pelo Estado, naturalmente, através da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), com um estatuto de autonomia, que atuará de forma independente em relação a qualquer dos prestadores, sejam públicos, privados ou sociais. Aliás a ERS que foi criada, quando desempenhei as funções de ministro da Saúde, tinha já como um dos seus principais objetivos assegurar esta regulação e fiscalização numa solução que estava a ser desenvolvida e que apontava para a nova configuração do ‘modelo’ do SNS que tenho vindo a defender.

Nesta nova configuração do sistema de saúde o Estado continuará a ser um ator fundamental: continuará a garantir a todos os portugueses a prestação de cuidados de saúde, de forma geral, universal e gratuita (só com taxas moderadoras) mas não será o único prestador e terá , na prestação dos cuidados de saúde à população, o ‘benchmarking’/competição, vinda dos prestadores privados e sociais, a favor dos utentes.

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