A Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) reuniu ao longo das duas últimas semanas na sede da ONU, em Nova Iorque, num momento da história em que os perigos de um conflito global aumentam a cada dia que passa. O secretário-geral, António Guterres, declarou que «Gaza é um pesadelo ininterrupto» e que o Líbano «está à beira do abismo».
O português tem estado debaixo de fogo pelo seu posicionamento na guerra entre Israel e o Hamas, mas a própria Organização das Nações Unidas continua a lutar pela relevância e até pela sobrevivência enquanto órgão capaz de prevenir (e, em último caso, mediar) tensões internacionais. Um papel que tem sido questionado de maneira sistemática, dada a incapacidade evidente para atingir os seus princípios fundadores: a manutenção da paz e da segurança internacional, o desenvolvimento de relações de amizade entre nações e a promoção do progresso social, melhores condições de vida e direitos humanos.
Sendo os primeiros dois objetivos – frutos do idealismo wilsoniano que viu fracassar a sua primeira experiência na Liga das Nações – de exequibilidade limitada perante a realidade das relações internacionais, e para evitar que tenha o mesmo fim que a sua predecessora, a ONU agarra-se aos últimos três objetivos supramencionados. Porém, o cariz da sua linha de ação, principalmente no que aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) diz respeito, levanta preocupações – como foi possível constatar num dos discursos mais disruptivos a que a Assembleia já assistiu.
A septuagésima nona edição da AGNU focou-se em nove pontos-chave, expostos no documento oficial: a «promoção do crescimento económico sustentável de acordo com as resoluções relevantes da Assembleia Geral e das conferências recentes das Nações Unidas», a «manutenção da paz e da segurança», o «desenvolvimento de África», a «promoção da justiça e do direito internacional», o «desarmamento», o «controlo das drogas, prevenção do crime e combate ao terrorismo internacional em todas as suas formas e manifestações» e, por último, assuntos administrativos e organizacionais.
Os discursos mais aguardados seriam, em vicissitude dos eventos que marcam a atualidade, o de António Guterres, o de Joe Biden, Presidente dos Estados Unidos, e o de Volodymyr Zelensky, Presidente ucraniano. A intervenção do ministro dos Negócios Estrangeiros britânico também deu que falar – para o bem e para o mal –, mas a mais marcante foi a do Presidente argentino, Javier Milei, pelo carácter disruptivo e corajoso – algo incomum na história recente da organização.
A escalada no Líbano e a guerra em Gaza foram também temas de destaque, a par da guerra em solo europeu.
O pântano internacional
O sistema internacional sofreu alterações significativas desde o início da década de 90, na ressaca do colapso da União Soviética e na consequente unipolaridade pautada pelos então incontestáveis Estados Unidos. Diversos fatores contribuíram para a condução do mundo em direção ao ponto a que nos encontramos, com focos de conflito do Mar do Sul da China à Europa, com o Médio Oriente pelo caminho.
O imperialismo de Putin, a dependência energética da Europa em relação à Rússia e a ascensão de economias emergentes – em particular a China – no pós-crise de 2008 foram alguns dos fatores decisivos que contribuíram para aquilo que é hoje o sistema internacional.
António Guterres, ex-primeiro ministro português e secretário-geral da ONU desde janeiro de 2017, conseguiu lograr nestes últimos anos de mandato feitos surpreendentes: a introdução do Irão na Comissão sobre o Estatuto da Mulher – erro que corrigiu no final de 2022 –, a permanência da China no Conselho de Direitos Humanos e a relativização inicial dos ataques perpetrados pelo Hamas contra Israel a 7 de outubro de 2023, algo que condenou de maneira perentória mais tarde. A constante promoção da Agenda 2030 e dos ODS são também uma imagem de marca do político português.
Em relação à crise no Médio Oriente, Guterres afirma: «Gaza é um pesadelo ininterrupto que ameaça arrastar consigo toda a região. […] O Líbano está à beira do abismo. O povo do Líbano – o povo de Israel – e o povo do mundo – não podem suportar que o Líbano se transforme noutra Gaza».
A Ucrânia foi também abordada pelo secretário-geral, seguindo-se um apelo à «paz justa com base na Carta das Nações Unidas, no direito internacional e nas resoluções da ONU».
Um discurso na medida do esperado, mas que acabará, provavelmente, por ser inócuo no exercício de drenagem do pântano internacional.
Eixo Washington-Kiev e o ponto de inflexão
Os discursos de Joe Biden e de Volodymyr Zelensky eram, naturalmente, aqueles que estavam envoltos em maior expectativa.
Biden, que cessará funções brevemente, dirigiu-se pela última vez à Assembleia Geral das Nações Unidas com um discurso expectável, mas com uma carga histórica e política de importância acrescida. A intervenção começou com uma analogia entre a volatilidade atual e a do ano em que foi eleito Senador pela primeira vez, 1972. Tal como hoje, as superpotências digladiavam-se então de forma indireta, o Médio Oriente estava em ebulição e existia ainda a agravante do envolvimento direto americano no Vietname.
Bem ao estilo de uma despedida, Biden realçou também a sua extensa dedicação às causas públicas – da oposição ao Apartheid à resposta ao 11 de setembro, passando pela condenação de Slobodan Milošević.
OPresidente americano declarou que estamos perante um novo ponto de inflexão e apelou, como não poderia deixar de ser, ao apoio à Ucrânia, reforçando a aliança transatlântica: «As boas notícias é que a guerra de Putin falhou o seu objetivo principal. Decidiu destruir a Ucrânia, mas a Ucrânia continua livre. Tentou enfraquecer a NATO, mas a NATO está maior, mais forte e mais unida do que nunca […] Mas não podemos parar».
Volodymyr Zelensky, que tem empreendido esforços de modo a obter a autorização para o uso de armamento ocidental para atacar o território russo, garantiu, perante a AGNU, que a Rússia «quer mais território […], o que é uma loucura, e está a apoderar-se dele dia após dia, enquanto quer destruir o seu vizinho».
A ajuda americana tem sido fundamental para a resistência ucraniana, apesar de alguns bloqueios significativos no Congresso, mas o resultado das próximas eleições presidenciais pode ditar uma mudança de abordagem.
O enfant terrible
O Presidente argentino, Javier Milei, protagonizou um discurso marcante e que assinala a rutura com a Agenda 2030. «Quero aproveitar», disse, «para – humildemente – alertar […] sobre o perigo que implica que esta organização fracasse em cumprir a sua missão original».
Quanto à agenda 2030, e após mencionar as origens e os benefícios da organização, o libertário deixou bem vincada a posição argentina: «A Agenda 2030, ainda que bem intencionada […] pretende resolver os problemas da modernidade com soluções que atentam contra a soberania dos Estados Nação e violentam o direito à vida, à liberdade e à propriedade das pessoas».
«A Argentina», assegurou, «não acompanhará qualquer política que implique a restrição de liberdades individuais, de comércio, nem a violação dos direitos naturais dos indivíduo».
O discurso de rutura, finalizado com uma referência a Thomas Paine, desafia o status quo da organização e coloca o tema da Agenda 2030 e dos seus objetivos no radar do debate e da opinião pública, plantando a semente para que se questione algo que tem sido transmitido como máxima universal incontestável, principalmente no Ocidente