Quando os polímatas lavram

Sim, há pirómanos e incendiários, conhecidos ‘tolinhos da aldeia’. Mas há também muita ignorância, imenso descuido e a ancestral negligência

Percebe-se o que Luís Montenegro ensaiou com o seu discurso sobre os incêndios. É a oração mitológica que apela à guerra, procurando uma mobilização que nos una, pelo menos no imaginário, contra um inimigo comum. 

Fardar esse fantasma com a capa de interesses económicos ocultos ajuda a cimentar essa comunhão. Vá lá que já não se ouvem os clamores de há quarenta anos, quando havia quem garantisse que os incêndios eram obra dos comunistas, que teriam um plano sinistro para destruir pelo fogo a propriedade privada. Agora, os malvados são os capitalistas, seja porque querem explorar o lítio, vender madeira queimada, urbanizar o que é mata, ou desbravá-la para montar painéis solares. Tudo isto com recurso a táticas de guerra que José Gomes Ferreira, o polímata da SIC Notícias, nos descreveu, até à exaustão, com tom grave e, reconheça-se, grande e colorida imaginação.

Declarámos guerra aos pirómanos e aos interesses obscuros. Juntos, primeiro-ministro e Presidente da República anunciaram solenemente represálias contra os malfeitores. Às armas, cidadãos, todos contra a piromania! Enfim, uma marselhesa à portuguesa. 

Entretanto, entre descargas dos Canadair, somos bombardeados pela comunicação social com mosaicos iluminados por clarões, ao som de um insuportável jargão: ‘lavrar’, ‘meios aéreos’, ‘operacionais’… Ouvimos ainda populares em pânico e dezenas de entendidos. Vemos bombeiros heroicos, populações que lutam pelos seus haveres e autarcas em pânico. 

Agora que amainaram – os fogos e a demagogia –, ouça-se quem sabe. Montenegro precisa de escutar os verdadeiros especialistas, como é o caso do arquiteto paisagista Henrique Pereira dos Santos, que há anos nos tenta despertar para a realidade. É que, como ele tentou dizer a Gomes Ferreira por entre interrupções e provocações, o discurso do incendiarismo pode corresponder ao senso comum, mas falta-lhe o bom senso. Sobrevalorizar as ignições, muito menos frequentes do que há alguns anos, é um fastidioso disparate. O que interessa perceber é por que razão o fogo alastra de forma descontrolada, quando as condições atmosféricas são propícias. Mais importante do que saber como começa um incêndio é perceber porque não para.

Sim, há pirómanos e incendiários, conhecidos ‘tolinhos da aldeia’. Mas há também muita ignorância, imenso descuido e a ancestral negligência. E há ainda organismos do Estado onde pululam incompetentes. No território florestal, que esses burocratas manifestamente desconhecem, convivem realidades diferentes. Existe um eucaliptal tratado e mondado que deve ser preservado, porque tem interesse económico. Mas também se verifica a profusão e infestação dessa espécie em terrenos onde de nada serve. 

Temos também as dificuldades dos pequenos proprietários, que não conseguem rentabilizar os seus terrenos e nem sequer têm onde depositar a biomassa, quando conseguem limpar o mato, cumprindo a lei. E, claro, faltam recursos para o combate aos incêndios. Só que nunca haverá suficientes para remediar o problema, dada a sua dimensão.

Falta perceber por que razão Portugal é, de longe, o país da Europa que mais arde. Os números comparados com outros países são aterradores. Já não se explica pela desertificação do interior: desta vez, os incêndios foram mais frequentes em áreas de média densidade populacional, próximas da costa, com boas acessibilidades. E, por muito que se possa saudar o combate que foi feito, os fogos dos últimos dias só não tiveram maior impacto porque a vaga de calor foi de curta duração. 

Não sou especialista, sosseguem. Mas seria bom que os governantes, em vez de aderirem à vox populi, ouvissem quem de facto domina o assunto. E eles existem!