Startups digitais russas e iranianas usam Estado português para se financiarem

A Câmara de Sintra e o IAPMEI estão a apoiar várias empresas tecnológicas da Federação Russa, e também do Irão, através de um programa de concessão de vistos a empreendedores fora do espaço europeu.

A Câmara Municipal de Sintra (CMS) e o IAPMEI estão a apoiar várias startups tecnológicas da Federação Russa  através de  um programa do IAPMEI de concessão de vistos ou autorizações de residência a empreendedores fora do espaço europeu. Os empreendedores russos são mesmo a grande maioria dos candidatos a este programa e e que foram bem acolhidos. Empresas especializadas em criptomoeda, gamers, soluções inovadoras digitais na área de transporte e saúde são alguns dos exemplos de startups russas que estão a ser apoiadas pelo Estado português através do ninho de empresas em Sintra. Das 15 empresas já aprovadas pelo IAPMEI e pré-aprovadas pela StartUp Sintra, oito são da Federação Russa e três do Irão. As sanções impostas pela União Europeia à Federação Russa e à Bielorrússia, e que obrigam todos os Estados-membros, estão em constante atualização e abrangem todas as áreas de negócio, em especial industrial, financeira, tecnológica e digital. Tendo como objetivo impedir que os investimentos feitos em países da UE  por empreendedores ou empresas não beneficiem direta ou indiretamente a Federação Russa.

O Startup Visa do IAPMEI define-se como um programa de «acolhimento de empreendedores estrangeiros que pretendam desenvolver um projeto de empreendedorismo e/ou inovação em Portugal»  com vista «à concessão de visto de residência ou autorização de residência  ainda que não tenham constituído empresa em território nacional ou que, já tendo empresa criada no país de origem, queiram implantar -se no nosso país», conforme pode ler-se no despacho de 2018 que regula este programa. O processo de candidatura prevê a certificação de incubadoras que possam ser entidades de acolhimento e apoio a estes  empreendedores para a criação e instalação em Portugal de empresas de base tecnológica. Sendo a StartUP Sintra uma das certificadas. Este ‘hub’ apoia a criação de empresas e acompanha os seus primeiros anos de actividade. Foi  fundada pelo Grupo Metal, pela Associação Empresarial de Sintra e conta com o apoio da CMS e do IAPMEI – Agência Portuguesa para a Competitividade. Cabe a esta entidade a pré-aprovação das startups que escolhem Sintra para abrir o seu negócio, cabendo ao IAPMEI a decisão final das candidaturas.

Das cinco statups que estão já a ser acompanhadas no concelho de Sintra, três são russas, uma é chinesa e a quinta é ucraniana/ israelita. Todas elas já passaram pelo crivo do IAPMEI. A somar a estas, aguardam decisão deste instituto e foram já aprovadas pela Startup Sintra «um conjunto de 10 startups que pré-aprovamos e que têm interesse em vir para a StartUp Sintra», conforme pode ler-se no relatório de atividades de do primeiro trimestre de 2024 deste ninho de empresas.  Do conjunto de 10 empresas, cinco são russas e três iranianas, sendo o Irão outros dos países alvo de sanções por parte da UE.  As duas restantes são de Marrocos e da Índia.

‘A Rússia é a Rússia’

Segundo o protocolo assinado entre a CMS, o IAPMEI, o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) e a Associação para a Promoção do Empreendedorismo  e Empregabilidade, que integra a StartUP, cabe ao município o «apoio financeiro anual de 51.000 euros».

Questionado em reunião de Câmara pelo vereador do PSD Luís Patrício, sobre a possível incompatibilidade entre a instalação no concelho através da StartUp Sintra de empresas russas e as sanções europeias, o presidente da CMS, Basílio Horta, respondeu: «Quanto ao contacto com a Federação Russa e com alguns investimentos russos, desde que não se metam em política… A Rússia é a Rússia, não é? Não sei porque é que contactam com a Rússia, não sei a razão de ser, mas não é com certeza só a Rússia com quem a Starup Sintra negoceia».

As três empresas da Federação Russa já instaladas em Portugal através deste programa e os projetos já aprovados pelo ‘ninho de empresas’ de Sintra têm em comum dedicarem-se ao desenvolvimento de soluções tecnológicas inovadoras em várias áreas. Tal como obriga o regulamento do programa financiado pelo IAPMEI SatrtUp Visa, os candidatos terão de demonstrar que «os seus projetos e/ou empresas se focam em tecnologia e conhecimento, com perspetivas de desenvolvimento de produtos inovadores».

Uma delas é a FinalBiome. Uma empresa russa fundada em 2022, que desenvolve uma plataforma de desenvolvimentos de jogos digitais. A FinalBionne «oferece uma possibilidade de implantação de jogos sem a necessidade de desenvolvimento, suporte e manutenção de retaguarda», lê-se na apresentação da empresa na candidatura. «Uma plataforma robusta para transformar as suas ideias criativas em jogos fantásticos. Obtenha a vantagem imbatível da tecnologia blockchain sem a necessidade de mergulhar profundamente nas suas complexidades. Não são necessários conhecimentos prévios, nem custos ocultos», garante o site desta startup.

Outra é a Logistat. Esta empresa desenvolve «um sistema inteligente para digitalizar, monitorizar e executar os processos das empresas de transportes: desde a manutenção, um calendário de viagens, de carga e definição de tarefas e análise predefinida do estado dos veículos. O serviço combina a funcionalidade de sistemas de software monolíticos e fornece-as ao utilizador num modo de solução única».

Já a beYANG dedica-se ao setor financeiro na área da criptomoeda: «O nosso projeto é uma startup especializada em fornecer dados históricos de mercado para negociação de criptomoedas. O nosso objetivo é capacitar comerciantes e investidores com dados precisos e fiáveis, dando-lhes uma vantagem competitiva no mercado de criptomoedas em rápida e constante mudança». E como? «Com a nossa experiência em tecnologia de cadeia e o nosso empenho em fornecer os dados de mercado mais atualizados, acreditamos que podemos tornar os comerciantes mais conscientes do mercado, fornecendo-lhes as melhores soluções da categoria e alcançar seus objetivos financeiros».

Os projetos russos que esperam o aval do IAPMEI para poderem ter visto ou autorização de residência são soluções digitais dedicadas ao setor da hotelaria, financeiro ou bem estar. «QR Menu é uma solução digital de vanguarda que está a remodelar o sector da hotelaria. Este projeto inovador substitui os tradicionais menus em papel por uma experiência gastronómica simplificada e sem contacto». A Vi Code Security Testing Suite define-se como «um projeto pioneiro de startup que se especializa na revisão de código dentro da indústria financeira descentralizada». A Got it life é «uma aplicação de selfcare que utiliza tecnologia de IA para melhorar a resiliência psicológica» e a  IT Plataforma, tal como o nome indica é uma «plataforma informática para fornecer uma solução rápida e eficiente para as empresas encontrarem trabalhadores que queriam trabalhar por turnos e em serviços em função da procura».

Do Irão para Portugal

Estão habilitados a concorrer a este programa os «empreendedores que pretendam desenvolver o seu projeto empreendedor e/ou inovador em Portugal, ainda que não tenham constituído empresa», assim como os «empreendedores que já detenham projetos empresariais nos países de origem e que pretendam exercer a sua atividade em Portugal». Cumprindo estes requisitos, os candidatos não podem ter residência permanente no Espaço Schengen; têm de apresentar a situação contributiva regularizada; não possuir antecedentes criminais; idade não inferior a 18 anos; meios financeiros próprios e de subsistência equivalentes a 12 vezes o Indexante dos Apoios Sociais (IAS). Devem ainda demonstrar que «têm interesse efetivo em desenvolver em Portugal um projeto empreendedor»; «desenvolver atividades de produção de bens e serviços internacionalizáveis»; garantir que «os seus projetos e/ou empresas se focam em tecnologia e conhecimento, com perspetivas de desenvolvimento de produtos inovadores»; ter «potencial para a criação de emprego qualificado» e, por último, ter «potencial para atingir até 5 anos após início da vigência do contrato de incubação, um volume de negócios superior a 325.000€/ano e/ou um valor de ativos superior a 325.000€».

Segundo os critérios aplicados pela StartUp Sintra, a quem cabe a pré-aprovação uma vez que um dos requisitos do programa StartUp Visa é que exista «interesse, de uma ou mais incubadoras certificadas, em incubar fisicamente o projeto empreendedor, nos termos do programa», também três empresas do Irão encaixam nos parâmetros. Uma delas dedica-se à combinação da realidade virtual com neurociência. «O nosso projeto visa transformar o tratamento de fobias juntando a Realidade Virtual com  neurociência. O objetivo é oferecer uma solução inovadora para superar diversas fobias, utilizando tecnologia avançada e princípios de neurociência para criar uma experiência terapêutica de realidade virtual que alivie e elimine respostas fóbicas».

A HeadMan desenvolve um «software AI Supervisor Assistant, concebido para melhorar a eficiência e a avaliação de recursos em ambientes de produção e  funciona como um supervisor eficaz para gerir trabalhadores e otimizar processos de produção através da utilização de capacidades de inteligência artificial».

Por último, a iraniana SeemsCool apresenta-se como «uma viagem gamificada para a literacia financeira e o empreendedorismo das crianças». E garante: «A nossa startup está pronta para lançar uma aplicação de aprendizagem de jogos inovadora em Portugal, dirigida a crianças dos 6 aos 12 anos. (…) A nossa missão é aliar a aprendizagem académica às competências do mundo real, fomentando uma geração de inteligência laboral e financeira».

Os restantes quatro projetos que encontraram o seu ninho em Sintra no âmbito deste programa são da China, da Índia, de Marrocos e da Ucrânia/Israel. 

Até ao fecho da edição, nem a CMS, nem o responsável pelo programa StartUP Sintra, nem o IAPMEI responderam às questões enviadas pelo Nascer do SOL.  Nomeadamente, sobre se estas empresas foram admitidas no programa de financiamento e apoio em Portugal apesar das sanções impostas aos respetivos países. Ou seja, se foram verificadas possíveis inconformidades e qual a razão para a elevada proporção de startups russas e iranianas.

ines.pereira@nascerdosol.pt