O Matuto está triste. Morreu Kris Kristofferson (Jun 22, 1936 – Set 28, 2024). Figura icónica da música country/folk Americana. Foi o cantor da “voz pequena”. O descansado Kris Kristofferson, cantava o rame-rame do quotidiano que nos faz hibernar. Aquela vidinha pacata que nos lança num vórtice ofegante, onde só temos velocidade e cansaço. Mas zero soluções. Em “Sunday Morning Coming Down”, um Kris de ressaca, atrapalha-se com a roupa suja mais limpa, lava a cara, penteia-se, tropeça pelas escadas abaixo, vê um catraio a chutar uma lata, vê um velho namoriscando uma moça, ouve os cânticos da Igreja, sente no ar o cheiro do frango assado… É Domingo, e o Matuto está em condições de afirmar que isso traz uma solidão ao corpo. Aliás, o corpo é uma constante nas canções de Kris Kristofferson. Em “Casey’s Last Ride” a namorada pede “just a kiss to make a body smile”. E quando Casey vacila à saída do bar ele não sabe se é por causa da cerveja no seu corpo ou “the tear that’s in his eye”. Tocar no corpo é na alma. Simples e desarmante.
O Matuto recorda um momento há muitas luas. O British Council de Lisboa era uma ilha iluminada na Rua de São Marçal. Sally, a prof de Inglês, autêntica Joan Baez, cantava “Me and Bobby McGee”. O lirismo da canção, a vulnerabilidade da letra, a nostalgia do ritmo folk, transformaram o instante numa arena baça para o Matuto. A última frase da canção, “Freedom’s just another word for nothing left to lose“, ressoou como uma reflexão poderosa sobre liberdade e sacrifício. Um vislumbre de redenção – pondera o Matuto.
O Matuto assevera que embora Kris Kristofferson não fosse explícito na sua religiosidade, muitos dos seus temas lidam com questões espirituais. Canções como “Why Me Lord” e essencialmente “Here Comes That Rainbow Again”, revelam um deslumbramento humilde perante a Graça – sentimento comum em muitos hinos religiosos. O Matuto sabe de fonte segura que Kris Kristofferson, viveu uma vida intensa e turbulenta. Todavia, Kris sempre explorou a sua fé e falhas, numa dimensão superior de regeneração. As suas canções são simples, com acordes básicos e estruturas melódicas tradicionais da country/folk. No entanto, essa simplicidade sublinha o pulsar rebelde da energia emocional das letras. Nada há de virtuosismo instrumental em Kris Kristofferson; a música é antes um veículo para as palavras, que são sempre o foco central. Ouçam “Loving her Was easier”; “Help me Make it Through the Night”; “For the Good Times” – tema imortalizado por Elvis Presley.
Mesmo nos filmes que interpretou, Kris Kristofferson, trazia-nos vestígios de redenção. A sua presença na tela, encarnando personagens introspectivas e dilaceradas, era pura imagem e palavra. Quando Kris aparecia o espectador precisava metabolizar cada cena, cada diálogo, cada gesto, cada olhar, cada esgar da face, cada silêncio. Sobretudo, cada silêncio. Como se numa pauta vazia se inscrevessem sussurros e gritos que cavavam fundo na alma dos personagens. Em “A Star is Born”, um cantor de rock em decadência é interpretado de forma crua e áspera por Kris Kirstofferson. No filme “Alice Doesn’t Live Here Anymore” Kris Kristofferson interpretou um fazendeiro amável que se envolve com Alice, a personagem principal. A sua interpretação foi subtil e contida, proporcionando um contraponto estável e compassivo à luta emocional de Alice. Foi um marco na carreira de Martin Scorsese – considera o Matuto.
E o Matuto recorda outro momento mágico. Emmylou Harris, a Dama do Country, pousou em Lisboa para um concerto memorável. Corria o ano de 1995 (6 de Julho). Às duas por três a dama anuncia: “here is a good country song. A good country song is always sad”. E depois acrescenta num murmúrio: “But with hope” – com esperança! E aí a dama entoou “Me and Bobby MaGee”, do nosso descansado amigo Kris Kirstofferson. Essa ideia calou fundo na vida do Matuto: uma canção triste, mas com esperança.
Há um elemento sagrado na música “profana” de Kris Kristofferson – conclui o Matuto. Kris caminhou por este mundo com a espontaneidade de quem anda descalço. E, embora habitasse domicílios onde se sentia estranho, Kris Kirstofferson, cantava o familiar. Lançando sinais de reconciliação. Vivendo esses sinais. Partilhando esses sinais de forma magnética com Rita Coolidge. Transfigurando os detalhes do real. Operando o milagre da redenção. Tinha uma “voz pequena”. Sim! Pequena, rouca e cava. Mas autêntica. Embora cantasse com “voz pequena” a sua alma se agigantava – matuta o Matuto.