Gosto de consultar revistas antigas. Conservam o sabor – e por vezes até o cheiro – de outras épocas. E é pelos evocativos anúncios das últimas páginas que começo a folhear um exemplar de Mundo Português – Revista de Actualidades do Império, de 1946. Continuando de trás para a frente, há uma secção de ‘recreio cultural’, com xadrez e palavras cruzadas, uma outra de ‘Ideias, factos e notícias’ e outra ainda dedicada às obras públicas nas colónias. Esta última abre com uma fotografia do Liceu Salvador Correia, em Luanda, em fase de construção. Atualmente um centro de formação de professores, seria aí que viriam a estudar figuras como Agostinho Neto e José Eduardo dos Santos.
Depois dos aperitivos, vamos os artigos mais substanciais. O primeiro – ‘A iconografia do negro na arte portuguesa’, assinado pelo pintor e historiador da arte Armando de Lucena – tinha tudo para me interessar, mas fica aquém das expectativas. Omesmo posso dizer de ‘Em Defesa da Arte dos Negros’, pelo escultor Diogo de Macedo, então diretor do Museu de Arte Contemporânea (Museu do Chiado). Peca pela superficialidade e sabe-me a pouco.
O prato forte vem a seguir, um artigo intitulado ‘Feitiços e Feiticeiros’. Esqueçamos por um momento a linguagem condescendente, os juízos de valor e expressões como «povos atrasados». Estamos em 1946 e não em 2024.
«Por terras de Angola durante largos anos procurei estudar a vida, usos e costumes dos negros», relata o autor. Deleito-me com a descrição que faz dos amuletos africanos: «Os que viajam tendo de atravessar os domínios do leão, rei da selva, e de percorrer as veredas onde a serpente traiçoeira se embosca, penduram ao pescoço, presa a um fio, certa raiz miraculosa, cuja eficácia depende de queimarem um bocadinho em cada lugar onde pernoitem. Contra as outras bichezas temerosas, outra raiz os protegerá./ As doenças e as desgraças afrontam-se adornando o pescoço com cabeças de serpentes, cágados, garras de aves de rapina, etc.». Deparamo-nos com idêntico sortido de estranhos objetos na bagagem do feiticeiro: «O feiticeiro exibe num cesto – Ongombo – as mais variadas bugigangas, tais como: cabeças de bichos, pequenos chifres de cabras do mato, unhas de animais ferozes, anéis de ferro, frutos secos, estatuetas esculpidas em madeira, bocados de espelhos, medalhas e tudo o mais que apanha à mão e vê que pode afervorar a credulidade do consulente.»
Eis que acabo de encontrar nesta espécie de National Geographic à portuguesa aquilo de que senti a falta na biografia de África de John Reader (de que aqui falei há poucas semanas): a cor local.
E ainda não chegámos à parte mais macabra. «Em remotas épocas, quando o soba [chefe da aldeia] adoecia e o mal se agravava, escondia-se a situação ao povo. Quando passava desta para melhor, transportavam o cadáver para uma cubata especialmente construída para tal fim em lugar recôndito da floresta […]. O corpo do soba era suspenso do tecto com a cabeça para baixo, e todos os dias uma pessoa eleita para tal fim torcia com gana o pescoço, até que a cabeça rolasse no chão.» Só então a morte do soba era anunciada. Quanto à cabeça, era besuntada com óleo e guardada numa caixa de madeira, onde já se encontravam as dos seus antecessores.
Na página final exibe-se uma fotografia da dita caixa com os crânios. «Creio poder afirmar que pela primeira vez se publicam fotografias deste grande segredo dos negros de Angola.» E quem é o autor de tamanha proeza? Não sei. Assina apenas ‘Frei Luís’ e não consigo encontrar-lhe o rasto. Tanto quanto a riqueza do artigo, impressiona-me a sua humildade.