O descontentamento dos bombeiros continua a crescer. O Governo promete soluções, mas os soldados da paz exigem que as suas reivindicações laborais tenham uma resposta até ao final deste mês. Mas ao que o nosso jornal apurou a onda de descontentamento tem criado algum mal-estar. «É absolutamente inaceitável o que se passou e nem sequer é comparável com os protestos dos polícias porque quando as forças policiais querem criar confusão vão à civil. Os bombeiros são soldados da paz, sejam eles profissionais, sejam voluntários. Ora, os soldados da paz não podem permitir fazer cenas daquelas. Tudo o que se passou é vergonhoso, invadir as escadarias foi um atentado à democracia e incendiarem uma farda foi indigno», disse ao Nascer do SOL um responsável que pediu anonimato, acrescentando que «o país não gostou destes protestos e só deu razão aos populismos».
Em resposta a estes protestos, o Governo anunciou a criação de um grupo de trabalho para analisar as questões relacionadas com os bombeiros voluntários que integram os quadros de pessoal das Associações de Bombeiros Voluntários (ABV) que irá focar-se na carreira dos bombeiros profissionais desses quadros, nos benefícios e regalias dos voluntários e na formação de todos os bombeiros das ABV. O anúncio surgiu na véspera de um debate no Parlamento sobre dois projetos de lei apresentados pelo PCP. Um deles pretende reconhecer a profissão de bombeiro como de risco e desgaste, enquanto o outro procura reforçar os direitos e regalias dos bombeiros. Ao mesmo tempo, os bombeiros profissionais, através da Associação Nacional dos Bombeiros Profissionais (ANBP) e do Sindicato Nacional dos Bombeiros Profissionais (SNBP), deram um prazo ao Governo até ao final do mês para responder às suas reivindicações laborais. Recentemente, centenas de bombeiros sapadores manifestaram-se junto à Assembleia da República, exigindo aumentos salariais, um subsídio de risco semelhante ao das forças de segurança e a revisão do seu estatuto.
Quanto ganha um comandante?
Ao que o Nascer do SOL apurou, do total dos voluntários existentes apenas 30% não recebe qualquer valor e beneficiam da cobertura de um seguro de morte ou de invalidez permanente e também de uma cobertura para internamentos e para tratamentos que é de 250 vezes o salário mínimo nacional. O mesmo cálculo aplica-se a todos as associações humanitárias de bombeiros. Já os outros 70% têm também direito ao valor que cada câmara municipal entende que tem de pagar.
«É preciso coragem para dizer quanto é que ganha um chefe em comando nos bombeiros, quanto ganha um subchefe quando está num piquete de 24 horas, quantas horas descansam… Geralmente, quando trabalham 12 horas têm 24 de descanso e há quem trabalhe dois dias numa semana e quase que descansa a semana seguinte», diz fonte ligada ao processo.
Uma polémica recente entre autarquias e o Governo acendeu o debate sobre as responsabilidades na gestão dos bombeiros sapadores. A ministra da Administração Interna chegou a afirmar que a responsabilidade é das câmaras municipais, gerando fortes críticas por parte de autarcas como Rui Moreira, presidente da Câmara do Porto, ao considerar que as declarações são um reflexo de desconhecimento ou uma tentativa de desinformação.
Ao nosso jornal, o autarca critica a governante, argumentando que, embora os bombeiros sapadores sejam pagos pelas câmaras, as suas carreiras são regulamentadas pelo Estado, explicando que as condições de trabalho e os subsídios dos sapadores são definidos por decreto-lei e não pelas câmaras.
Moreira não quer um tostão do Estado
Moreira acrescenta que o Porto tem vindo a pedir melhorias nas condições de trabalho dos sapadores, referindo-se a questões como o subsídio de risco, salubridade e a reforma antecipada devido ao desgaste rápido da profissão. «Este assunto tem sido uma matéria que, a par de outros que têm a ver com também os seus horários, os municípios que têm bombeiros sapadores, como é o nosso caso, já vínhamos a alertar o Governo anterior», afirma.
A Câmara do Porto chegou a propor uma recomendação para que o município pudesse melhorar as condições dos seus bombeiros sapadores, mas esbarrou nas limitações impostas pelo Governo central: «Não estamos a pedir um tostão ao Estado. É permitir apenas que […] possamos dar-lhes aquilo que, a nosso ver, eles têm mais do que direito».
E lamenta que as autarquias não tenham poder para melhorar as condições remuneratórias dos sapadores, já que estas estão sob o controlo do Governo. «As carreiras dos bombeiros sapadores estão definidas por decreto-lei. Portanto, mesmo que o presidente da câmara queira pagar-lhes mais […] não pode. Não pode definir critérios de penosidade. Tudo isso é definido pelo Estado central», diz.
Já Carlos Carreiras, presidente da Câmara de Cascais, explica o caminho seguido pelo seu município. «Há municípios no país que decidiram, em determinadas épocas, criar um corpo de bombeiros próprio. A aposta em Cascais foi sempre de não criar corpo de bombeiros próprio e de apoiarmos as associações de bombeiros voluntário», explica.
O autarca considera que a criação de um corpo de bombeiros municipais em Cascais seria prejudicial aos voluntários, que passariam a ser «um apêndice dos sapadores». O presidente da câmara explicita ainda que, ao contrário de outras autarquias, Cascais tem flexibilidade para apoiar financeiramente os bombeiros voluntários, oferecendo subsídios e equipamento. «Fechámos um apoio suplementar para cada associação de bombeiros de 50 mil euros», acrescenta, sublinhando que esses fundos são geridos diretamente pelas corporações, o que inclui a distribuição entre os bombeiros.
Tribunal de Contas em cima dos pagamentos
Também o diretor de departamento do Serviço Municipal de Proteção Civil da Câmara Municipal de Cascais, Rui Ângelo, ao Nascer do SOL, explica que as câmaras municipais não têm autonomia para alterar as condições salariais dos bombeiros sapadores, já que «isso é uma carreira que está definida a nível nacional. […] O Tribunal de Contas depois chega e diz que não há enquadramento legal para isso e ainda é pior, porque o bombeiro, o trabalhador em geral, tem de devolver a verba».
Fonte próxima do processo revela que a Assembleia da República poderá legislar estas matérias, mas refere que cabe à Associação Nacional de Municípios negociar. «Este tipo de questões não podem ser partidarizadas», salienta, referindo que «já se devia ter feito uma reforma para ver se não há um excedente de associações humanitárias de bombeiros».
No entanto, a mesma fonte garante que nada tem sido feito porque tanto o Governo como as autarquias «têm um medo terrível dos incêndios florestais porque não têm quem os vá apagar se não forem os bombeiros» e defende que face a esse cenário «há muita coisa que vão aceitando».
Também Rui Ângelo lembra que os sapadores são funcionários públicos que respondem ao presidente da câmara, tal como os bombeiros municipais, ambos com nomes diferentes mas funções idênticas: «Os bombeiros municipais ou sapadores é a mesma coisa, só com nomes diferentes». Rui Ângelo também aborda a situação dos bombeiros voluntários em Cascais, detalhando que estes corpos são entidades privadas e que, ao contrário dos sapadores, as autarquias podem estabelecer protocolos de apoio financeiro, sem interferir diretamente nos vencimentos: «O que nós podemos fazer é fazer protocolos […] e dar-lhes um pagamento pelo facto de eles apoiarem a proteção civil em ocorrências». Destaca que Cascais investe fortemente nos bombeiros voluntários, fornecendo veículos e equipamento, além de subsídios extraordinários, como um apoio recente de 50 mil euros para cada uma das cinco associações de bombeiros do concelho. «Só aí são 250 mil euros que o município dá aos corpos de bombeiros», frisa.
Voluntários sem carreira
No entanto, sublinha que os bombeiros voluntários enfrentam desafios adicionais, uma vez que «não têm carreira» definida, em contraste com os sapadores. «Os sapadores municipais querem a melhoria da sua carreira […] mas os bombeiros voluntários, que são a maioria, nem carreira têm», observa. Rui Ângelo também menciona a crescente escassez de voluntários, sobretudo em concelhos urbanos como Cascais, onde a dependência de voluntários durante o dia é impraticável: «Durante o dia, em concelhos como Cascais, não se pode estar dependente de voluntários. […] Se há uma emergência, eles têm de vir correr, se as entidades patronais os deixarem sair».
Opinião contrária tem uma fonte ligada aos bombeiros. «O voluntariado precisa de ter menos conversa e mais obra e menos tentativa de protagonismo para atingir objetivos pessoais. Nos últimos dois, três anos tem-se vindo a criar coisas incríveis e qualquer dia ninguém se entende. Tem de se analisar e contratualizar até que ponto é que os bombeiros têm responsabilidade sobre determinadas áreas e daquilo que é a área da proteção civil deve ser paga à dimensão daquilo que são os seus custos de trabalho», lembrando que «os bombeiros são ressarcidos pelas suas funções. Nomeadamente, no que diz respeito ao transporte de doentes mas é claro que terá de ser negociado o quilómetro. E deve-se separar o socorro na emergência, separar o combate aos incêndios florestais e contratualizar com as associações humanitárias o valor correspondente à sua participação neste processo todo até para para que as associações humanitárias não andem a cobrir a ação voluntária porque estão ali indivíduos que estão a ser pagos para fazer piquetes».
E aponta o dedo ao atual presidente da Liga. «Devia ter uma mão mais firme, um discurso calmo e apaziguador, mas não o faz porque anda à procura de protagonismo pessoal», salienta.
Os números
Nos últimos anos, o número de bombeiros em Portugal tem registado uma queda significativa, atingindo o seu ponto mais baixo em 2021, com 26.123 bombeiros, um decréscimo acentuado face ao máximo de 42.208 registado em 2006. Em 2022, houve uma recuperação para 31.021 bombeiros, segundo dados da PORDATA. Contudo, a diminuição de efetivos continua a ser um problema em várias regiões, como no Pinhal Interior, onde os números caíram drasticamente desde os anos 90. Em Pedrógão Grande, por exemplo, o número de bombeiros desceu de 277 para 148.
Em 2022, Portugal contava com 12.332 bombeiros profissionais, um aumento significativo face a 2011. No entanto, o número de bombeiros voluntários tem vindo a diminuir, passando de 22.000 para 18.000 nesse período. Apesar desta queda, entre 2021 e 2022 registou-se um aumento de 5.000 bombeiros, com destaque para a faixa etária mais jovem, onde o número de novos bombeiros duplicou. O Dispositivo Especial de Combate a Incêndios Rurais (DECIR) mobilizou, em 2024, 14.155 bombeiros e 3.173 veículos, um aumento em relação ao ano anterior. Quanto às remunerações, um bombeiro voluntário no DECIR recebeu 67,30 euros por dia, um aumento face a 2023.
Em termos legislativos, os bombeiros em Portugal estão divididos em várias corporações: Bombeiros Voluntários, Sapadores, Municipais e Privativos. Os Bombeiros Voluntários funcionam em associações humanitárias, muitas vezes com voluntários não remunerados, enquanto os Bombeiros Sapadores e Municipais são corporações profissionais geridas pelos municípios, sendo mais comuns em grandes e médias cidades. Os Bombeiros Privativos pertencem a empresas e protegem infraestruturas críticas, como aeroportos ou fábricas.
Portugal investe relativamente pouco na proteção contra incêndios, tendo gasto 343,8 milhões de euros em 2022, o que corresponde a 0,3% das despesas públicas, colocando o país ao nível de Malta e Eslovénia. No contexto europeu, o país está abaixo da média, com 0,27% dos empregos ocupados por bombeiros profissionais, de acordo com dados do Eurostat.