É óbvio que o Matuto viveu um “antigamente” – pela sua idade. Naturalmente que o Matuto está a viver o “modernamente” – por estar vivo. Também é óbvio que antigamente as coisas eram diferentes. Melhores ou piores, o Matuto não está em condições de dizer. Tem gente que só porque “a coisa” é diferente vai logo dizendo à boca cheia que é pior. Não é o caso! Ser diferente é apenas ser distinto; diferir parcial ou totalmente. Só isso!
Ora, o Matuto sabe de fonte segura que antigamente os pirralhos dobravam a língua na presença dos mais velhos. Antigamente, os pirralhos limitavam-se a ser pirralhos. Agoramente, os gaiatos zombam na cara dos progenitores. Viraram pequenos tiranos! Antigamente, os trabalhadores depois da jorna, tinham a janta e saíam lá fora para partilhar histórias de vida. Sempre com cuidado para não tomarem sereno. Actualmente, trabalha-se, come-se e vive-se dentro do écran do telemóvel (tela do celular, no Brasil, por favor). Antigamente, as roupas passavam de mão em mão. Um casaco ou uma camisa ganhava sobre vidas em corpos diversos. De irmão para irmão; de primo para primo, etc. Hoje, roupas, sapatos, relógios, pilhas, garrafas, colchões, carros… é tudo descartável! Todavia, ironicamente, anuncia-se a urgência de reciclar para salvar o planeta. Antigamente, o menino que tinha a bola jogava sempre, mesmo que fosse um zero à esquerda. Se a mãe o chamava, ele e a bola iam embora. Fim de jogo! Antigamente, trocavam-se cromos (figurinhas, no Brasil, por favor) da bola entre coleguinhas. Os mais difíceis – o Humberto Coelho e o Néné do Benfica – eram comprados, em desespero de causa, nos vendedores ambulantes da Praça do Comércio e da Estação do Rossio. O Matuto lembra-se bem destas incursões com o Sr. João, pai do Matuto. Antigamente, fazia-se colecção de selos. Hoje as crianças nunca viram tal coisa. Antigamente, para se conseguir um beijo na cara da moça mais bonita da turma, era uma aventura épica. O momento “pós beijo” era pleno de bochechas coradas e olhares envergonhados. Contemporaneamente, há beijos e tudo o mais que é um fartar vilanagem. Antigamente, quando queríamos uma fatiota mais empinocada, íamos à modista. Com mestria a modista encarrapitava uns alfinetes coloridos numa almofada minúscula, enquanto ajeitava os tecidos ao longo da perna, do cotovelo, dos ombros… parecia uma bruxa espetando alfinetes numa boneca de vudu. Modernamente, carrega-se numas teclas do computador e faz-se a compra online. O Matuto leu uma crónica deliciosa de Maria do Rosário Pedreira onde ela se queixava dos inconvenientes associados às compras pela Internet. Por exemplo: o algoritmo. Escreve Maria do Rosário: “o inconveniente que é deixar por aí a minha pegada de Cinderela: agora, de cada vez que vou à Internet, o écran do meu computador transforma-se numa autêntica sapataria e só me apetece dar uma biqueirada no algoritmo”. Antigamente, guardava-se os lápis numa caixa de madeira. Hoje os alunos encaixam tudo em estojos da Kipling, sempre com um macaquinho pendurado. Antigamente, fazia-se corridas nas ladeiras com carrinhos de esferas (rolimã, no Brasil, por favor); jogava-se à apanhada (pega-pega, no Brasil, por favor); às escondidas (esconde-esconde, no Brasil, por favor); à cabra cega, ao pião; ao mata (queimada, no Brasil, por favor); ao lencinho da barra; ao berlinde (bolinha de gude, no Brasil, por favor); às caricas… No presente, a garotada dedica-se exclusivamente aos video jogos. Antigamente, esperava-se um dia para o frigorífico (geladeira, no Brasil, por favor) descongelar. O Matuto lembra-se de lagos periódicos na cozinha. Antigamente, bebia-se água da torneira à refeição, e comia-se pão com manteiga ao lanche, ou duas bolachas Maria. Mousse ou pudim flã, só aos domingos ou quando havia visitas. Antigamente, a garotada andava de bicicleta. O Matuto andou muito de “pasteleira”. Os ousados gritavam: “Pai! Mãe! Sem mãos”! Na curva seguinte ficava-se “sem dentes”. Hoje a moçada anda de bike. É mais chique! Toda a gente usa capacete e protecções, mas os dentistas perderam clientes. Antigamente, as moçoilas eram mimosas e completavam primaveras. Os moçoilos arrastavam a asa, mas, por vezes tinham que ir pregar para outra freguesia. Antigamente, aviava-se uma receita, esfregava-se vick no peito quando se tinha gripe, levava-se uma tampa, ficava-se a ver navios, por vezes comia-se o pão que o diabo amassou, os homens usavam ceroulas e havia um penico debaixo da cama. O Matuto garante que antigamente as pessoas não morriam, descansavam.
Mas, claro, obviamente que isso tudo era antigamente. Modernamente – constata o Matuto – a vida, sendo diferente, é uma sangria desatada.