Qual é o trajeto que uma peça de roupa percorre até chegar ao nosso roupeiro ou guarda-fatos? A resposta óbvia será que isso depende de onde ela foi produzida e depois comprada. Claro, não há como negá-lo. (O resto do trajeto até casa é com cada um.) Mas existem também no mundo da moda correntes subterrâneas que ditam tendências sem que o grande público tenha disso consciência.
No filme O Diabo veste Prada, Miranda Priestley, a temível diretora de uma revista de moda (interpretada por Meryl Streep) abre um pouco o jogo num raspanete que dá à sua jovem estagiária quando esta lhe confessa candidamente: “Ainda estou um bocado a aprender sobre estas coisas…”.
“Estas… ‘coisas’? Ok, tudo bem. Estou a ver, achas que isto não tem nada a ver contigo”, começa Miranda. “Tu… vais ao teu armário e escolhes… não sei, aquela camisola azul com borbotos, por exemplo, porque estás a tentar dizer ao mundo que te levas demasiado a sério para te importares com o que vestes, mas o que tu não sabes é que aquela camisola não é só azul, não é turquesa, não é lápis-lazúli, na verdade é cerúleo”. E aqui começa a lição sobre a história da moda e os seus meandros:“Também desconheces o facto de, em 2002, Oscar de la Renta ter feito uma coleção de vestidos azul cerúleo, e então acho que foi Yves Saint Laurent, não foi?… quem mostrou casacos militares cerúleo”.
Aestagiária encolhe os ombros, admitindo a sua ignorância na matéria. Miranda continua a reprimenda: “E depois o cerúleo apareceu rapidamente nas coleções de oito designers diferentes. Em seguida, começou a aparecer gradualmente nos grande armazéns e por fim escorreu para algum canto trágico e ocasional onde, sem dúvida, o pescaste nalgum cesto de liquidações”.
Quando pensámos que já terminou, aplica o golpe final da sua argumentação:“No entanto, este azul representa milhões de dólares de inúmeros empregos, e é um pouco cómico como pensas que fizeste uma escolha que te põe à parte da indústria da moda quando, na verdade, estás a usar uma camisola que foi selecionada para ti de uma pilha de ‘coisas’”.
A frase final não se limita a mostrar até onde chegam os tentáculos da moda – sobretudo, atira-nos à cara como esta indústria acaba por nos influenciar e por determinar escolhas que pensávamos ter feito livremente. No fundo, é essa a essência da manipulação:fazer com que o alvo pense estar a decidir pela sua cabeça quando, na realidade, há muito que alguém, movendo os cordelinhos nos bastidores, já tinha decidido por ele.
Na moda, à mesa e no turismo
A personagem de Miranda Priestley, diz-se, é decalcada de Anna Wintour, a carismática diretora da Vogue americana, que tem lugar cativo na primeira fila de todos os desfiles.
Wintour é talvez o exemplo mais consumado da influencer do nosso tempo. Uma simples palavra sua e uma peça de roupa, uma coleção inteira ou talvez até uma ‘grife’ tem o seu destino marcado.
Durante alguns anos, a diretora da Vogue teve o seu equivalente masculino na área da gastronomia, Frank Bruni. Considerado o ‘papa’ dos críticos de restaurantes, Bruni podia fazer ou desfazer a reputação de um estabelecimento num artigo. Ninguém sabia quem ele era ou como era – corria até que podia ser uma mulher assinando sob um nome falso –, só se sabia que trabalhava para o The New York Times, mas os chefs viviam entre o sonho e o terror de tê-lo como cliente. Depois disso, Bruni passou a ser colunista do jornal, tendo em 2012 publicado um artigo onde explicava como se tinha apaixonado por Lisboa. Tudo começou quando estava de passagem pela capital portuguesa, a caminho do Douro, e tencionava apenas ficar a descansar no quarto de hotel até à estirada seguinte.
Como o quarto no hotel não estava pronto, resolveu ir dar uma volta pela cidade. Subiu ao Castelo de S. Jorge eficou com vontade de regressar.
“Em Lisboa ocorreu-me que talvez os nossos lugares favoritos sejam simplesmente aqueles onde as nossas expectativas são constantemente superadas, onde o acaso se intromete a nosso favor, e não importa que bifurcação escolhamos. Leva sempre a algum lugar onde seremos felizes”. Não haveria melhor publicidade possível – e Lisboa tornou-se um destino de eleição para milhões de turistas por esse mundo fora – algo de muito parecido ao que aconteceu depois de Woody Allen ter rodado Vicky Cristina Barcelona na cidade de Gaudí.
O primeiro influencer
Os influenciadores estão por todo o lado – nos jornais, no cinema e, sobretudo, na internet, o que pode levar-nos a pensar que se trata de um fenómeno relativamente recente. Na verdade, encontramos uma figura deste tipo em tempos tão recuados quanto o início do século XVI.
Pietro Aretino (1492-1556) era filho de um sapateiro, mas, graças à proteção de um aristocrata amante da sua mãe, conseguiu infiltrar-se nos meios cortesãos de Perugia e Roma. Se Giulio de’ Medici chegou a Papa, em parte a ele o deveu.
“Durante os seus dez anos em Roma, [Aretino] mostrou grande habilidade em pasquinadas e sátiras ao explorar as fofocas políticas e eclesiásticas”, escreve John A. Marino em Who’s Who in Europe 1450-1750. “Os seus poemas obscenos (1524) para as gravuras proibidas de posições sexuais” – uma espécie de kama sutra renascentista – “de Giulio Romano só aumentaram a sua notoriedade”. Nota ainda o historiador:“Aretino instalou-se em Veneza em 1527 onde viveu no luxo como leão literário, amigo de artistas como Ticiano, satirista escandaloso dos ricos e famosos ao longo dos restantes trinta anos de vida”.
Parte desse luxo era financiada pelo que escrevia. Outra parte era financiada pelo que não escrevia. Não por acaso lhe chamaram “o flagelo dos príncipes”: Aretino conseguia que muitos lhe pagassem avultados estipêndios simplesmente para ele não usar a sua pena – considerada a mais afiada do Renascimento – para os denegrir.
Passados cinco séculos, continua a haver gabinetes de governantes que compram, ou tentam comprar, bloguers e outros influencers para os elogiarem ou, pelo menos, não os desancarem em público. Como é óbvio, há aspetos em que nestes cinco séculos não evoluímos tanto quanto nos habituámos a acreditar.