As greves de jogadores de futebol não são comuns mas a que foi promovida pelos Futbolistas Argentinos Agremiados abalou os alicerces de toda a América do Sul. De repente o governo do general JuanDomingoPerón via-se enfrentado por gente que exigia mais dinheiro e melhores condições de trabalho, acusando os clubes com quem tinham contratos de tremenda disparidade entre o que recebiam e o que estavam disposto a pagar. E, em seguida, os maiores futebolistas da Argentina pura e simplesmente fugiram. Com um destino em particular: a Colômbia.
Ora, o futebol colombiano também vivia tempos fervilhantes. A Dimayor, responsável pela organização dos campeonatos, entrou em guerra com a Federação Colombiana, rasgando o entendimento que existia e independentizando-se do poder federativo. AFIFA não foi de modas: expulsou a FCF até que esta retomasse o poder que lhe era devido.E a Dimayor também não foi de modas: fez com que o universo rolasse à sua medida.
Em 1948 o mundo era um bocado mais pequeno do que é hoje. Ou pelo menos parecia, visto assim à distância. O que se passava na longínqua Colômbia só chegava aos ouvidos da Europa se viesse em forma de bula papal, ou coisa que o valha.
Em 1948, na Colômbia, foi assassinado o líder de esquerda, Jorge Eliécer Gaitán, em Bogotá. O país mergulhou em dez anos de insurreição e criminalidade: um período conhecido por ‘La Violencia’. Mais de 200 mil mortos. No seu castelhano musicado, os colombianos chamaram a esse dia 9 de Abril de 1948 El Bogotazo.
Em 1948, na Colômbia, as coisas tornaram-se um pouco confusas. Em todos os aspetos. O público colombiano tornou-se tão louco por futebol como os seus colegas do Brasil, da Argentina ou do Uruguai. E os clubes colombianos entraram numa febre consumista sem paralelo na história do jogo.
Alfonso Senior Quevedo: fundador do Clube Millionarios de Bogota, foi igualmente o criador da Dimayor, em finais de 1947. Dimayor: a primeira liga profissional colombiana, a primeira liga profissional a não colocar restrições à utilização de estrangeiros. Adiantemo-nos até 1949. Carlos Aldabe, o treinador do Millionarios, viajou para Buenos Aires e tratou de contratar as estrelas grevistas que iriam fazer do seu clube um dos grandes da história do futebol. Adolfo Pedernera foi o primeiro. A emoção foi enorme. Pedernera era um ídolo intocável, um dos maiores ídolos de sempre na Argentina. Ninguém queria acreditar que trocaria oRiver Plate pelo Millionarios.Mas a verdade é trocou. Iria ganhar quatro vezes mais do que ganhava. Ninguém conseguiu fazer com que mudasse de ideias. O dique abria-se às escâncaras. Cinquenta outros argentinos firmariam, na semana seguinte, contratos com clubes colombianos.
No centro de La Violencia, o futebol, na Colômbia, era uma festa. Chamavam-lhe o El Dorado.
Há tanta coisa para escrever sobre o El Dorado que dava um livro. Fiquem descansados: não temos espaço para isso aqui.
Voltemos ao Millionarios: eis que chega Di Stéfano, vindo do River Plate. E o uruguaio Héctor Scarone, treinador campeão do Mundo em 1930. E Néstor Rossi, Héctor Rial, Antonio Báez, Reinaldo Mourín, Pedro Cabillón, Alfredo Castillo, Julio Cozzi, Raúl Pini e Hugo Reyes, todos argentinos. E Alcides Aguilera, Angel Otero, Jose Saule e Victor Bruno Lattuada, uruguaios. E o paraguaio Julio Cesar Ramirez, e o peruano Ismael Soria, e o brasileiro Danilo. E havia os colombianos Francisco Zuluaga, Manuel Fandiño e Gabriel Uribe.
Em 1948, a Colômbia era longe como, sei lá, Timbuktu ou o sopé das montanhas doPamir. Para os que, como eu, não têm memória desses tempos, recorro a quem a tem e escreveu sobre eles. Gente capaz de recitar assim, em WM e tudo, que era a tática preferida: Cozzi; Zuluaga e Raul Pini; Julio Cesar Ramirez, Nestor Rossi e Ismael oria; Reyes, Perdernera, Di Stéfano, Baez e Reinaldo Mourín.
Carlos Arturo Rueda: foi talvez o maior nome do jornalismo desportivo colombiano. Um dia, ao ver o Millionarios bater o Real Madrid, em Caracas, disse convicto: «Esta é a melhor equipa do Mundo! Um verdadeiro Ballet Azul!». O nome ficou.
A Disneylândia
O peso colombiano estava em alta. Os clubes pagavam dinheiro a rodos. Os grevistas argentinos tinham encontrado um pote de ouro no fim do arco-íris. E não era apenas o Millionarios. Nem eram apenas argentinos. Valia tudo: o Deportivo Calí, por exemplo, começou por ir buscar o craque peruano Valeriano López, avançado temível, e construiu em seu redor uma equipa que levou o nome de Rodillo Negro. O Independiente Medellín não quis ficar atrás e montou um conjunto de onze titulares peruanos, entre os quais Tito Drago e Segundo Castillo, conhecido por Titina. A imprensa delirava. Criava apodos para os seus clubes galácticos. O Independiente passou a ser Danza del Sol, tal o esplendor das suas exibições. O Junior de Barranquilla virou-se para o Brasil e trouxe de lá Elba de Pádua Lima, oTim, e Heleno de Freitas. Em seguida juntou-lhes um quarteto de húngaros: Wladislaw Zsoke, Imre Danko, Béla Sárosi e Fernes Neyrs.
O público enchia os estádios até rebentarem. Era como se vivessem numa Disneylândia futebolística que lhes reservava surpresas a toda a hora. Hernando Lara Hernández, um dos fundadores do Cúcuta Deportivo, viajou para oUruguai e trouxe doze jogadores de uma só vez: Julio Terra, Alcides Mañay, Juan José Tulic, Dardo Acuña, Lauro Rodríguez, Washington Barrios, Luis Alberto Miloc, Carlos Zunino, Abraham González, Ramón Villaverde, Julio Ulises Terra, Juan Deluca e Juan Carlos Toja. Insatisfeito contratou dois campeões do mundo de 1950: Schubert Gambetta e Eusebio Tejera. A Dimayor era uma farândola enlouquecida. O Deportes Caldas atingiu o cúmulo do êxito ao ir à Lituânia buscar um guarda-redes: Víctor Kriscuonas Vitatutas. Até uma equipa só composta por argentinos foi criada com a intenção de disputar jogos particulares e servir de montra para possíveis contratações, o Rosario Wanders. Acabou por mudar de nome. Chamou-se Deportes Quindío e passou a integrar o campeonato.
Apesar de tudo, o Millionarios deu cabo da concorrência. De 1948 a 1953 ganhou cinco títulos consecutivos com mais de 100 golos marcados por época. Os resultados repetiam-se: 5-0, 5-1, 5-2. O Ballet Azul tinha uma regra: chegando aos cinco, entretinha-se o público. Uma bola no meio do ballet. Só o Deportes Caldas foi capaz de quebrar tamanha superioridade. A saída de Di Stéfano para oReal Madrid, em 1953, poria fim ao cintilar do El Dorado.