A política portuguesa tem vivido episódios profundamente caricatos. As eleições do passado dia 10 de março foram marcadas por duas coisas importantes: o fim do bipartidarismo, apesar de não sabermos se é circunstancial ou estrutural; e por outro lado, o centro-direita ergueu um muro para separar-se da sua direita: Luís Montenegro remeteu-nos para o famoso: “não é não” com o CHEGA. Contudo, no meio das tensões do Orçamento de Estado, André Ventura disse que Luís Montenegro esteve disposto a ir atrás com a palavra dada, dando o dito por não dito. Até hoje, o governo não conseguiu desmentir e, portanto, parece-me lógico assumir-se que é verdade, ou seja, para Luís Montenegro, não é não; afinal é sim.
Sendo verdade, Luís Montenegro percebeu o problema em que se colocou. Ao descartar o CHEGA, resta o PS. Isto criou uma situação muito complexa para todo o sistema político. Em primeiro lugar, o PSD é forçado a fazer uma aproximação ao PS para conseguir a aprovação do orçamento de Estado. Não foi Rui Rio, foi Luís Montenegro.
Um dos episódios mais divertidos foi termos o Chat GPT a explicar-nos que o PSD apresentou um orçamento de esquerda. Estranho para quem conquistou o PSD explicando que a aproximação ao PS da anterior liderança social-democrata tinha descaracterizado o partido, conduzindo-o a um conjunto sucessivo de derrotas eleitorais. Ou seja, no fim, mesmo quando o PS perde, o PS manda.
Por outro lado, o PS está também num conflito interno complicado de gerir e não tem grandes opções. Os socialistas tiveram uma derrota pesada nas eleições do dia 10 de março, perdendo mais de um terço da sua bancada parlamentar e esvaziando a maioria absoluta. Durante anos, o PS fez uma campanha a demonizar o CHEGA, acreditando que ao fazer isso, permaneceria indefinidamente no poder. Essa convicção seria reforçada com a maioria de António Costa conquistada em 2022. Ora, essa estratégia falhou. O “não” de Montenegro ao CHEGA pode obrigar o líder do PS a salvar o PSD da “extrema-direita”. O histórico do discurso socialista pede agora um assumir de responsabilidades. Já percebemos que pouco importa o orçamento, mas sim os seus protagonistas. Pedro Nuno Santos, que sempre foi visto como representante máximo da ala mais esquerdista do PS e que patrocinou a radicalização do PS, apoiou convictamente a geringonça com BE e PCP como aliados naturais do PS, está perante um impasse complicado. Isto é, pode ter de fazer tudo aquilo que jamais pensou que iria fazer: viabilizar um orçamento do PSD.
No fundo, os líderes dos dois principais partidos do regime terão de perder a cara para manter o poder. Terão de fazer tudo aquilo que nunca defenderam e que, aliás, sempre desprezaram. O PS poderia ter tido José Luís Carneiro; o PSD teve Rui Rio. Ambos apontaram para este caminho que parece agora inevitável. Nesse aspeto, vale a velha máxima de Marcelo Rebelo de Sousa: em política, ter razão antes de tempo é não ter razão.
É verdade que o cenário de eleições antecipadas será cada vez mais forte e isso poderá ser inevitável, o CHEGA provavelmente até poderá perder parte da sua bancada parlamentar. No entanto, tudo leva a querer que continuará a manter o mais importante: ter a força suficiente para que não haja uma maioria de direita sem ele. Se o impasse político se mantiver, e se Luís Montenegro não der lugar a alguém que possa unir a Direita, continuando a obrigar o PSD a privilegiar o diálogo com o PS e, por isso, a deslocar-se para a esquerda, então assistiremos, com grande grau de certeza, a uma mudança política profunda: um dos dois tenderá a desaparecer. PS e PSD não poderão coabitar no mesmo espaço político, tentando simultaneamente a ambição de ser os grandes partidos do regime. Ambos merecem estar nesta posição: o PS, por cinismo; e o PSD, por ter sido a direita que a esquerda gosta. É um acertar de contas com a História.
Em caso de eleições antecipadas, ainda que difíceis, André Ventura poderá apresentar-se ao país, mais do que nunca, como a grande hipótese de derrotar o establishment de PS e PSD. Irá assistir a socialistas e a sociais-democratas a destruírem-se mutuamente. Tornar-se-á o único protagonista relevante da Direita política e ficou com o espaço todo para si. Será responsável por, finalmente, ao fim de 50 anos, a social-democracia ocupar o seu espaço político natural, o centro-esquerda. Ninguém nega a sua capacidade de destruir o que precisa de ser destruído, mas será isso suficiente para ser uma alternativa? Conseguirá construir as respostas para os problemas que levantou? Pode parecer um pormenor, mas é de facto, hoje o grande por-maior. Sobretudo, na última semana, ficámos com a ideia de que o tempo passou a correr a seu favor.