Confesso, caro leitor, que já não suporto a novela a propósito da aprovação ou chumbo do Orçamento do Estado. Quase todos nos querem fazer crer que seria terrível se o Presidente da República não tivesse outra alternativa que não fosse a convocação de eleições.
Não partilho desta ansiedade. Há uma crise de ingovernabilidade que não tem solução com a atual composição do Parlamento, sendo inclusive exacerbada pela crispação das lideranças. Ninguém acredita que esta gente desentendida se irá, subitamente, entender. A não ser pelo temor de novas eleições, o que, convenhamos, não é uma razão que nos possa sossegar. E mesmo que reconheçamos o empenho de Marcelo Rebelo de Sousa em manter o status quo, bem sabemos que, no ocaso da sua presidência, já não dispõe da varinha mágica que lhe permita assumir a autoridade como power broker.
O que está em jogo não são as opções ideológicas do Orçamento. A proposta que se conhece já foi modulada pela necessidade que, ciente da sua posição minoritária, Montenegro demonstrou ao adequar as grandes opções às exigências do PS. Neste sentido, a proposta orçamental não difere muito daquela que Fernando Medina teria apresentado, se não tivesse havido dissolução.
O que sucedeu é que o PS mudou de rumo com o novo secretário-geral. Ou seja, um orçamento ‘à Medina’ não satisfaz a dupla Pedro Nuno Santos/Alexandra Leitão. E, sendo assim, não vale a pena perder mais tempo. Que venham então as eleições.
Também é inútil responsabilizar o Chega: se os dois partidos querem fazer de André Ventura um proscrito, dificilmente se podem queixar quando ele age como tal. Se o Chega não conta para a equação parlamentar, a AD não pode ignorar que os seus deputados são em número menor do que os do PS e dos partidos de esquerda, nem pode querer que o proscrito se transforme no seu ‘seguro de vida’.
As linhas vermelhas do PS a que o PSD se submeteu durante a campanha eleitoral, e que Montenegro tem respeitado, teriam sempre esse custo. Apesar do Parlamento ter uma maioria de direita, a exclusão do Chega da equação resulta em benefício do PS, que não se coibirá nunca de agregar o PCP, o BE e o Livre para construir uma formação mais numerosa do que a da AD, mesmo que esta possa contar com a inconsistente Iniciativa Liberal.
Há quem defenda que o chumbo do Orçamento não implica a dissolução. Esta perspetiva não avalia o custo da ingovernabilidade a que assistimos e do clima pré-eleitoral sem eleições marcadas em que todos os partidos, desde o BE ao Chega, passaram a ser liberais na receita e socialistas corporativos na despesa. Todos querem ou menos impostos (diferindo apenas se deve ser no IRS, IRC ou ISP), ou menos taxas ou portagens. Todos querem distribuir prebendas, aos velhos ou aos novos, aos professores ou aos polícias, aos bombeiros ou aos funcionários judiciais, aos médicos ou aos enfermeiros. Ou a todos. Ora, mesmo que o OE seja aprovado na generalidade, já sabemos que, seja na discussão na especialidade, seja em iniciativas avulsas posteriores de maiorias oportunistas e improváveis, a despesa vai disparar.
Enquanto assistimos pacatamente a esta novela, vemos que o líder socialista tenta resolver o problema da sua nau exigindo aos seus camaradas um voto de silêncio. Dá vontade de chorar, quando nos lembramos que, quando saiu do governo, foi comentador e não se coibiu de criticar António Costa e as suas opções.
Valha-nos o líder do PCP para nos fazer rir, quando diz que o Orçamento se inscreve no processo contrarrevolucionário em curso.