Antonio Skármeta. O carteiro de uma geração massacrada

1940-2024. O autor de O Carteiro de Pablo Neruda morreu aos 83 anos

Há homens que morrem com a boca cheia de noite e água, homens que sempre recordaram a vida como um só dia, que talvez nem lhes fosse destinado, um dia incessante, sem origens. Um dia a meio da semana, bom para se nascer ou morrer, para se sentir um homem transportado pelo acaso, indo ao encontro de uma mulher dessas que buscamos para nadar ou envelhecer. Antonio Skármeta acreditava no impacto de uma frase burilada pelas estações, como os frutos mais generosos, e contava que, quando pelos 13 ou 14 anos, tinha por hábito apaixonar-se perdidamente de dois em dois dias – e para toda a vida – por mulheres mais velhas que ele. Conta-nos que algumas dessas belezas então inalcançáveis, as «amava com toda a raiva do silêncio», e foi aos versos que foi buscar um embalo digno daquela volúpia adolescente. Pablo Neruda foi um mestre, e antes de o conhecer e de lhe passar os seus escritos antes de os publicar, já andava com as suas coletâneas de poemas como companheiros, recordando como nem era caso único, pois por aqueles dias, no Chile, os versos do então jovem poeta, se transformaram «de modo preciso nas palavras preferidas pelos amantes obsessivos, os jovens vencidos pela melancolia de um amor impossível». Quem morreu esta quarta-feira, foi aquele adolescente que se lançou na exploração dessa hora solitária, longa como uma artéria, entre o ácido e a paciência do tempo enrugado. Alguém que foi aprendendo a separar as sílabas receosas dessas que estão tocadas pela ternura, antes de um ponto final arbitrário pôr termo a tudo isso. Como explicou o filho, Skármeta enfrentou «um longo processo que começou há anos com Alzheimer e terminou em morte natural».

O escritor, cineasta e académico chileno, era reconhecido sobretudo como autor do romance Ardente Paciência (1985), mais tarde intitulado O Carteiro de Pablo Neruda, e que se tornou um êxito na adaptação ao cinema de 1994, que partiu da iniciativa do ator italiano Massimo Troisi, que interpreta o carteiro, contracenando com o ator francês Philippe Noiret, que encarna o celebrado poeta. A devoção de Troisi ao filme, no qual dividiu os créditos de realização com Michael Redford, veio a estar na base de um documentário, sendo que a rodagem terminou com uma ambulância à porta do plateau, vindo o ator a morrer no dia seguinte. Foi adiando uma cirurgia cardíaca urgente para concluir o projeto, e acabou por não assistir sequer à estreia do seu maior êxito. Na verdade, o romance foi a adaptação de um filme que o próprio Skármeta realizou em 1983, inspirando-se na sua relação com Neruda, e tendo como cenário a Isla Negra, no Chile, e não a ilha italiana onde decorre a ação do filme que veio a ser nomeado para quatro categorias dos Óscares.

Vencedor do Prémio Nacional de Literatura em 2014, Skármeta faz parte da chamada Geração dos Anos 60, juntamente com os poetas e escritores chilenos Poli Délano, Oscar Hahn e Claudio Bertoni, e foi um autor bastante prolífico, tendo publicado uma dezena de romances (a maior parte deles publicados entre nós por Carlos da Veiga Ferreira, na Teorema e depois na Teodolito, e traduzidos por José Colaço Barreiros), e ainda vários livros de contos, peças de teatro, ensaios e livros para a infância. Junte-se a isto o seu trabalho na sétima arte, tendo assinado alguns guiões, e ainda as funções como diplomata e académico, tendo ensinado Filosofia e Literatura na Universidade do Chile. Um traço comum nas suas obras é um esforço de retratar de forma digna e calorosa a classe popular, escrevendo num registo acessível e vivaz, que transmite o seu fascínio pela poesia, a sua adoração por Shakespeare e os seus ideais políticos, marcadamente de esquerda.

Skármeta viveu de forma efusiva o período da Unidade Popular de Salvador Allende, tendo integrado o Movimiento de Acción Popular Unitaria (MAPU), e participado na fundação da revista cultural La Quinta Rueda, mas quando se deu o golpe de Estado, em 1973, foi forçado a exilar-se. Passaria 16 anos longe do seu país, passando uns tempos na Argentina e na Bolívia, mas sobretudo na Alemanha Ocidental, onde deu aulas de guionismo na Academia Alemã de Cinema e Televisão, em Berlim, tendo adaptado várias das suas obras para o cinema. Tendo estado sempre ligado a grupos de artistas e intelectuais chilenos que se dedicavam a tarefas solidárias e literárias, como a Araucaria de Chile, a revista cultural da resistência chilena publicada em Madrid, na qual colaborou com alguma regularidade. Se até ao exílio tinha publicado sobretudo livros de contos, foi então que deixou o registo mais experimental e escreveu vários romances, o primeiro dos quais Soñé que la nieve ardía (1975), seguido de No pasó nada (1980), La insurrección (1982) e Ardiente paciencia (1982).

Após o plebiscito de 1988, em que os chilenos puderam pôr fim à ditadura de Augusto Pinochet, Skármeta regressou ao país e criou a sua oficina literária Heinrich Böll no Instituto Cultural Alemão Goethe, em Santiago, onde teve um papel tutelar para uma importante geração de escritores. Manteve também uma colaboração regular como colunista em diversos títulos da imprensa chilena, como a revista Caras e o jornal La Época, onde apurou o seu olhar crítico sobre temas que iam da cultura ao desporto. Escreveu ainda textos ilustrados por artistas dirigidos ao público mais jovem «porque também gosto de me dedicar a exaltar a fantasia daqueles que vão ser os futuros poetas-narradores», disse quando recebeu o Prémio Nacional de Literatura.

Aquele livro que nos deixa um retrato mais fiel do próprio autor é o primeiro romance, Soñé que la nieve ardía, onde o seu entusiasmo com o teatro experimental e a súbita conflagração dos ideais do Maio de 68 tem muito mais peso do que o embevecimento com a tradição oral e o realismo mágico dos romances que, por esses dias, tomavam de assalto o mundo das letras. Skármeta viu o Boom latino-americano passar-lhe ao lado, preferindo explorar um registo de crónica em que uma série de personagens dadas a deambulações oníricas, entre a performance circense e os acalorados debates filosóficos, se confrontam com o desastre do golpe de Estado de 1973. A queda do governo de Salvador Allende e o seu assassinato na Casa de la Moneda foi o grande trauma que ele e outros escritores se recusaram a ultrapassar.

Enquanto outros escritores sul-americanos forçados ao exílio se instalaram em Barcelona, ao abrigo de Carmen Balcells, antes de o Boom se tornar um vespeiro, Skármeta andou aos tombos e sem um destino certo, até Berlim e o cinema o terem poupado à condição de penúria a que se vira condenado. Mas o tema fundamental da sua escrita foi sempre esse esforço para restaurar a dignidade dos vencidos, tentando restituir as gerações que se viram espoliadas dos seus sonhos e precipitadas num período de perseguições e massacres àquele momento simbólico em que se vislumbrou o que seria um movimento de verdadeira união e solidariedade social.